António Rego Chaves
Magalhães-Vilhena disse de António Sérgio (1883-1969) que este «ocupa na história das ideias filosóficas em Portugal uma posição singular». E que nada, talvez, a definiria melhor do que «a distância imensa que o separa do vivaz e culto mas, de certa maneira, limitado» Verney, «do enciclopedista ‘estrangeirado’ Ribeiro Sanches, da fluidez filosofante e do confusionismo ‘teórico’ de Oliveira Martins, do diletantismo metafísico-social» de Antero. Valorizava no grande pedagogo a «amplíssima formação científica e humanista», «o dom em sumo grau da análise de ideias minuciosa e tersa», «a riqueza e a acribia de seu pensamento ágil e vivo em consonância com a limpidez, a musicalidade expressiva da frase e a subtileza na tradução das ideias».
«Perante a Inexistência de uma Civilização Cristã» é o titulo de uma conferência proferida por António Sérgio no Clube Fenianos Portuenses, em 5 de Fevereiro de 1948. Neste mesmo ano, um jovem advogado de nome Adriano Moreira seria detido pela PIDE por «ofensa à dignidade do Estado», o MUD era formalmente ilegalizado e presos todos os membros da sua Comissão Central e da Comissão Distrital de Lisboa e ver-se-ia proibido o jornal «O Trabalhador», órgão oficial da Liga Operária Católica e da Juventude Operária Católica, dirigido pelo padre Abel Varzim, perante a passividade cúmplice do Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira. Tal era a inconfundível quota-parte do salazarismo na construção da chamada «civilização cristã ocidental», inseparável do discurso oficial da ditadura.
Pergunta António Sérgio: «A civilização cristã, dizem eles. Mas haverá no Mundo uma coisa – um conjunto de praxes, de atitudes, de estilos de viver, de costumes – digna de se dar com tal, digna de se apelidar de cristã, se chamarmos ‘cristão’ – como é lógico – a quanto quadra com o Cristo, com o seu sermão da montanha, com a espiritualidade do Verbo, com a fraternidade evangélica? Onde apareceu, ouso perguntar, onde existe, uma civilização cristã? Onde?» (…) Onde se viu noutros tempos, onde se pode ver actualmente, um arremedo qualquer de uma civilização cristã?» (…) «Ao olhar para o conjunto dessas populações do Ocidente – para o como elas são; o como vivem; o como é que se tratam; o como é que procedem (não para o que dizem, reparem bem, mas para o que fazem); quando vemos as guerras, os maquiavelismos, os conflitos de interesses, o colear das mentiras (…) eu pergunto: aos europeus, aos ocidentais, a nós, cumpre-nos defender a civilização cristã (como por aí nos proclamam) ou antes criar uma civilização cristã, que (…) não existiu até hoje?»
O brilhante ensaísta recorre então a Antero de Quental e a António Vieira, separados por dois séculos, para demonstrar que «há um momento em que nos aparecem juntos, em identificação absoluta, o panfletista revolucionário e o pregador jesuíta». Nem um nem outro reconheceram no seu tempo uma civilização cristã. Referindo-se a Cristo, diz Antero que «a prática supersticiosa de lhe adorar a imagem coincidiu com a miséria de lhe amortalhar o espírito». Do anti-cristianismo da pretensa «civilização cristã» deduz o poeta a inutilidade do que foi a pregação de Cristo. A concepção de Jesus que nos apresenta «é a de um Cristo que nos prega o Reino de Deus cá na Terra, um desejo de perfeição que se deve manifestar hora a hora, nas relações sociais desta vida – e não só no além-morte, em qualquer porvir transcendente.»
António Vieira sintetizara: «Somos católicos no credo, e hereges nos mandamentos.» Leigos e eclesiásticos partilhariam a culpa de não existir algo a que se possa chamar com verdade uma civilização cristã. Além disso, o sacerdote seiscentista põe em relevo a influência da orientação económica na falta de cristianismo da civilização europeia, ou seja, do que chamamos «civilização cristã». Em suma, não seria possível servir a dois senhores, Deus e o dinheiro. Uma forma de civilização caracterizada pela competição e pela guerra entre os homens para chamarem a si o dinheiro não seria digna de ser classificada como cristã. Haveria que encontrar modos de apropriação do dinheiro sem ofensa dos preceitos de uma moral cristã. Na opinião do jesuíta, o maior dos sacrilégios consiste, precisamente, em que os homens não se servem do dinheiro para servir a Deus e chegam mesmo a servir-se de Deus para servirem o dinheiro. Sabia do que falava, pois estigmatizara a escravidão dos ameríndios e as artimanhas usadas pela Igreja Católica para confiscar os bens dos judeus: «Que representava, por exemplo, no pensar dos portugueses coloniais do Brasil, a conversão dos indígenas à fé do Cristo?» Ou, em todo o Império, a zelosa perseguição dos cristãos-novos pelo Santo Ofício? «Só» isto: «Querem que aos ministros do Evangelho pertença a cura das almas, para que a servidão e cativeiro dos corpos seja dos ministros do Estado.»
Ora, para António Sérgio, uma civilização cristã não existe sem liberdade: a liberdade social, isto é, o direito ao trabalho; a liberdade política, ou seja, o direito de discussão e de crítica. Quanto à «liberdade burguesa», como chama à liberdade que caracteriza o regime capitalista, «a do gosto de satisfazer sem o menor resguardo a paixão desenfreada de ganhar dinheiro, a que culmina no ‘trust’, no monopólio, no mercado negro, na usura, na destruição de produtos para altear os preços, na feitura de alimentos com substâncias tóxicas, nas campanhas jornalísticas de excitação patrioteira promovidas pelos fabricantes de material de guerra e até nos conflitos que se dão no mundo para garantir os lucros dos industriais de armamento», interroga, «não será ela que inspira os discursos de alguns dos defensores mais entusiastas desta dura civilização que temos e que pretende inculcar-se como sendo modelar e cristã»?
António Sérgio respondeu apelando para «uma economia fraterna de cooperação e igualdade», para uma «civilização racional, uma civilização de consciência», essa sim, bem digna de ser caracterizada como «civilização cristã». Estava à vista, era a Utopia.
António Sérgio, «Perante a Inexistência de uma Civilização Cristã», Editorial Inquérito, 1948, 39 páginas