O fogo, as cinzas e as brasas
António Rego Chaves
Dir-se-ia mais um panfleto anti-soviético, anticomunista e antiprogressista – mas não é isso ou não é apenas isso, ainda que certas afirmações caiam numa exposição unilateral dos factos, pois não se fazem ouvir as razões dos vencidos. O historiador Marc Ferro explica à sua neta «o Muro de Berlim e a queda do comunismo», respondendo às perguntas decerto muito pouco complexas formuladas pela adolescente. Assim sendo, as respostas não revestem uma grande complexidade – e o ancião faz desfilar perante nós um disciplinado exército de doutas evidências e irrefutadas banalidades.
A primeira frase do avô diz quase tudo: «Mais do que qualquer outro episódio, a queda do Muro de Berlim [a 9 de Novembro de 1989] assinala o falhanço do regime comunista.» Poucas páginas passadas, remói o refrão: «Vinte anos depois da queda do muro de Berlim, é já um dado adquirido que esse acontecimento marcou o falhanço e o fim do comunismo.»
«Que se passou depois na Europa?» – pergunta a jovem. Responde Marc Ferro: «Na Alemanha, depois da queda do Muro e a reunificação, o pluralismo democrático reina, MAS [as maiúsculas são nossas] a ex-parte oriental do país considera-se despromovida, senão sacrificada… Na Rússia, o pluralismo é mais aparente do que real, no entanto a democratização controlada progride.» (…) «Uma parte da população sente-se abandonada e vítima dessa evolução.» Ou seja, «tudo está bem quando acaba»…mal?
Mas, sabe-se, os problemas criados na sequência da «implosão» da União Soviética e do fim do regime comunista, em 1991, não ficaram por aqui. «Nunca a penúria foi tão alarmante como na época em que [o Presidente Boris] Ieltsin e [Igor] Gaidar, o seu primeiro-ministro, puseram em prática as primeiras etapas da privatização, logo seguida pelos despedimentos maciços. A inflação propagou-se, tornou-se impossível pagar os salários: milhões de pessoas ficaram sem recursos e viram-se obrigadas a vender os seus bens pessoais para sobreviver.» Devido às «privatizações selvagens, o petróleo, o gás, os minerais passaram para as mãos de alguma gente poderosa e o banditismo impôs-se nos meios bancários». (…) «Destruída assim a rede institucional e produtiva, os russos sentiram-se à deriva. Os serviços públicos, educativos e de saúde caíam inelutavelmente no abandono, sem falar da segurança do emprego, desaparecida com a privatização. Com excepção de uma minoria – sem cessar crescente – maldiziam-se as reformas que se encontravam na origem deste marasmo, e com elas [Mikhail] Gorbachev, que tinha posto termo ao poderio do país.»
Prossegue Marc Ferro: «As pessoas idosas, os sem-trabalho, os que tinham deixado o seu ‘colectivo’ para construir uma vida nova (cerca de 15 por cento da população activa) e os reformados eram as primeiras vítimas dessas reformas. Outrora, os soviéticos incriminavam a burocracia, mas, paradoxalmente, os russos encontram-se hoje ainda mais afastados das esferas dirigentes.» (…) «Os magnatas substituíram os czares e muita gente experimenta o sentimento de ter sido abandonada à sua sorte.» (…) «Para os cidadãos da URSS, a passagem ao liberalismo, à privatização, assinalou a sua derrocada pessoal, e a sua cólera não visou o socialismo mas aqueles que haviam destruído o sistema no qual tinham vivido.»
Que se terá na realidade passado entre a população após a súbita mudança de regime? A resposta do historiador não deixa grande lugar para dúvidas: «Os acontecimentos tinham sido provocados pelo Poder e a sociedade não participou neles senão aos solavancos. Depois, na ‘democracia’ que pouco a pouco se instalou, a gestão ultrapassou o pluralismo – o qual continua a ser fictício – e os cidadãos são simplesmente espectadores.»
Na antiga União Soviética, como um pouco por toda a Europa de Leste, nos países que muitos chamavam os seus «satélites», a mudança roçou, por vezes, a mais cruel caricatura. Na Rússia, por exemplo, «a ‘nomenklatura’ passou a ser a classe mais abastada, enquanto o director do Instituto do Ateísmo foi promovido a director do Instituto das Religiões, sem esforço aparente…Espantosa Rússia.» Ou espantoso oportunismo? Pois não é verdade que os membros do KGB viram modificado o nome da instituição após o desmantelamento, mas que a maioria deles se manteve em funções?
Que resta do «socialismo real» praticado durante mais de setenta anos pela URSS? A interpretação de Marc Ferro é cautelosa e matizada, recusando confundir a sua linguagem com a do anticomunismo militante instalado quase sem contestação entre historiadores, politólogos e «fazedores de opinião» na Europa e nos Estados Unidos. Reportando-se à Revolução Francesa, sugere que «os ideais de 1789 nunca foram atingidos, não apenas a igualdade ou a liberdade, mas também a fraternidade e, mais geralmente, os direitos do homem». Acentuando que a recordação do passado não morreu para os ex-soviéticos, releva que tal passado «não trazia em si apenas uma promessa, um projecto, mas um combate». Acrescenta: «A queda do comunismo na URSS deitou abaixo a ‘fortaleza’ que constituía a amarra (talvez sem razão) de grande número de revolucionários, a referência (também errada) dos mundos do trabalho. A URSS surgia sobretudo como uma força de recusa – sobretudo do capitalismo.»
Conclui o autor de «Os Tabus da História» e de «O Ressentimento na História» (obras de que antes nos ocupámos): «Se a URSS já não existe, a recusa continua a existir. O seu falhanço e a reprovação que conheceram as suas experiências conservaram um gosto a cinzas para aqueles que tinham fé nela. O fogo adormeceu, mas as brasas continuam lá, constantemente reanimadas pelo ressentimento. E, para que a sua carga expluda, como diria Lenine, não são precisos revolucionários: basta deixar agir os dirigentes.»
Marc Ferro, «Le mur de Berlin et la chute du communisme expliqués à ma petite-fille», Seuil, 2009, 125 páginas