Bernard-Henri Lévy/«O Século de Sartre»

Sartre: um filósofo cortado ao meio

BHL começa por dividir o filósofo em dois; em seguida idolatra o «bom» - e deita o «mau» para os caixotes do lixo da História

António Rego Chaves

Eis um livro duplamente interessante: primeiro, porque se ocupa de Sartre; depois, porque é escrito por um dos seus mais severos críticos póstumos. A técnica de Bernard-Henri Lévy (BHL) é simples: começa por dividir Sartre em dois; em seguida conserva o «bom Sartre» como uma relíquia – e deita o «mau Sartre» para os caixotes do lixo da História.

Não foi por capricho que Claude Lanzmann disse que BHL nada entendeu das posições políticas de Sartre nos anos 50, durante a Guerra Fria. O autor distingue um amável Sartre «libertário», «existencialista», «anarquista», de um detestável Sartre «totalitário», estalinista», «maoísta». Quem irrita BHL é o homem que um dia se atreveu a declarar que «o marxismo é a filosofia inultrapassável do nosso tempo». Imperdoável «apostasia filosófica»!

Sempre menos profundo que brilhante, menos lúcido que temperamental, BHL decreta que o «bom» Sartre escreveu A Náusea, O Ser e o Nada, Os Caminhos da Liberdade, Reflexões sobre a Questão Judaica, Que É a Literatura; Saint Genet; o «mau» tomou posição em favor da URSS e do PCF, assinou Os Comunistas e a Paz, a Crítica da Razão Dialéctica, o prefácio de Os Condenados da Terra, de Franz Fanon. Temos de convir que o autor não brinca quando se põe ao serviço do «pensamento único», isto é, centrista, «intelectualmente correcto»…

Erros do «militante» Sartre, segundo BHL: ter-se tornado num companheiro de jornada de Jorge Amado, de Pablo Neruda, de Ilya Ehrenburg; antiamericanismo; tomadas de posição pró-soviéticas, nomeadamente no que se refere ao «progresso», à elevação do nível de vida da população, à «liberdade crítica» dos operários, à recusa de identificar nazismo com comunismo, à classificação de Soljenitsine como «um homem que tem ideias do século XIX», ao seu silêncio em relação a Kravchenko, depois de este ter «escolhido a liberdade»; a denúncia dos então «novos filósofos» franceses – entre os quais BHL se incluía – como agentes da CIA; a amizade com Fidel Castro e o apoio ao seu regime; a apologia da violência dos colonizados contra os colonizadores; a defesa do «terrorismo» palestiniano contra os atletas israelitas sequestrados durante os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972; o apoio ao recurso à força pelos operário s contra os patrões. Bondades do «aventureiro» Sartre, segundo BHL: denúncia da invasão da Hungria (1956) e da Checoslováquia (1968) – ainda que bem atento ao aproveitamento que as suas declarações poderiam ter no chamado «mundo livre» e que o seu apego ao comunismo se tenha mantido; defesa de Freud, Kafka e Joyce perante os seus interlocutores leninistas; a generosidade em relação aos Rosenberg, aos colonizados em geral e aos argelinos em particular, aos republicanos espanhóis vencidos e aos judeus alemães exilados, aos curdos, aos arménios e aos biafrenses, ao escritor cubano Heberto Padilla; o seu apoio a Israel na Guerra dos Seis Dias e na Guerra do Kippour.

O intelectual BHL puxa pela cabeça – como, aliás, compete aos oficiais do seu ofício – para compreender como é que um homem de 35 anos (o soldado Jean-Paul Sartre, depois de aprisionado em 1940 pelos nazis num campo de internamento em Trèves) abandona o individualismo, o anarquismo, o dandismo e descobre a solidariedade, a fraternidade, o socialismo. Será que é assim tão difícil compreender uma evolução da despolitização para a politização, da indiferença para o «engagement», da revolta solitária para a revolta solidária? BHL não quer mesmo perceber que o homem que escreveu a Critica da Razão Dialéctica é o mesmo que escreveu A Náusea – e que isso não constitui um «crime» de incoerência, antes o produto de uma evolução ideológica consumada sem quaisquer fins lucrativos. O «bom», o «grande», o «verdadeiro» Sartre é, para BHL, o dos textos estranhos ao marxismo; o outro seria, portanto, o «mau», o «pequeno», o «falso». O anticomunismo de BHL tem razões que a razão desconhece.

Haveria ainda um terceiro Sartre, explicita BHL, o dos últimos anos, que teria descoberto o mistério da ressurreição da carne, a Bíblia, a mística e o messianismo judaicos. Sublinhamos: teria descoberto, porque não existem testemunhas idóneas vivas desta evolução, que poderá ter consistido apenas na formulação de uma derradeira pergunta sem resposta humanamente possível. Ou numa derradeira pergunta cuja resposta Sartre preferiu silenciar…

Bernard-Henri Lévy, «O Século de Sartre», Quetzal, 2000, 712 páginas

Publicado no «Diário de Notícias» em 18/01/2001