Metafísicos na Rua dos Douradores
António Rego Chaves
Alfredo Margarido pôs o dedo na ferida, na recensão da 1.ª edição deste livro de João Rui de Sousa, agora «revista, aumentada» … e melhorada: «Certa crítica literária continua fiel, em muitos casos e mau grado ela, a uma leitura teológica do autor: de um lado há o homem, o corpo, a sua actividade profissional, que são apenas os resíduos inevitáveis da própria existência humana, compensados, pelo outro, pela actividade do espírito, que funciona completamente separado das contingências do quotidiano.»
Concluía o ensaísta, também poeta e ficcionista: «Uma das qualidades do texto de João Rui de Sousa é mostrar a relação constantemente tecida entre o correspondente comercial e o gestionário e a poesia de pelo menos dois heterónimos: Álvaro de Campos e Bernardo Soares.»
Na verdade, para além da investigação, decerto bem intensa e laboriosa, que levou a cabo, João Rui de Sousa apresenta-nos um Fernando Pessoa com corpo e alma, trabalhando na cidade de Lisboa e, à semelhança do «semi-heterónimo» Bernardo Soares, um «empregado de escritório» que procura entender a metafísica das coisas na soturna Rua dos Douradores, onde «soía gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo»...
O poeta havia posto na boca de Bernardo Soares esta melancólica reflexão, decerto próxima da concepção que muitas vezes tinha da sua condição e da dos seus pares: «Todos nós, que sonhamos e pensamos, somos ajudantes de guarda-livros num Armazém de fazendas, ou de outra qualquer fazenda, em uma Baixa qualquer. Escrituramos e perdemos; somamos e passamos; fechamos o balanço e o saldo invisível é sempre contra nós.»
Assim sendo, é legítimo perguntar, tal como Richard Zenith, se o «Livro do Desassossego» não será «uma velada autobiografia espiritual, interior, do próprio Pessoa». Responde o eminente estudioso: «Em grande parte sim, desde que tenhamos alguma cautela, resistindo à tentação de promover declarações isoladas a asserções gerais e definitivas aplicáveis ao verdadeiro autor.» Porém, o investigador não deixa de salientar «o íntimo parentesco entre o criador e o criado», anotando: «Fernando e Bernardo têm seis de oito letras em comum, e Pessoa e Soares cinco letras de seis.»
Pelas suas próprias palavras descrito como um «correspondente estrangeiro em casas comerciais», Fernando Pessoa teve desde sempre – releva João Rui de Sousa – «plena consciência da valia e da grandeza do seu destino como escritor, das suas excepcionais capacidades e da missão de que se incumbira: a de levar em frente a sua obra, dando-lhe corpo, aprofundando-a, afinando-a e investindo-a de uma, ainda que não aparente, coerência orgânica. A esse objectivo sacrificou quase tudo: bem-estar, estabilidade e um mínimo de desafogo económico. Com essa missão sacrificou, até, o único amor da sua vida e a genuína paixão de uma mulher.»
O próprio Fernando Pessoa, numa das últimas cartas que enviou a Ofélia Queiroz, em Setembro de 1929, exprimiu sem rodeios o que o prendia – e sobretudo o que o não prendia – à obscura profissão que se vira forçado a adoptar: «Não posso, infelizmente, abandonar os escritórios onde trabalho (não posso, é claro, porque não tenho rendimentos), mas posso, reservando para o serviço desses escritórios dois dias da semana (quartas e sábados), ter de meus e para mim os cinco dias restantes. Toda a minha vida futura depende de eu poder ou não fazer isto, e em breve. De resto, a minha vida gira em torno da minha obra literária – boa ou má, que seja, ou possa ser. Tudo o mais na vida tem para mim um interesse secundário.»
Porventura um dos mais interessantes capítulos deste ensaio é o intitulado «Quando a obra fala da profissão». Nele, «finda a viagem pelo mundo de escritórios e empresas onde o poeta, durante quase três décadas, esteve envolvido, quer trabalhando por conta de outrem, sem qualquer rigidez de horários e com regime remuneratório muito especial, quer assumindo ele mesmo o leme de empreendimentos comerciais a que se abalançou», João Rui de Sousa refere-nos alguns «reflexos que, desse universo, são visíveis na sua obra mais criativa – poética ou de ficção.» Eis duas transcrições que ilustram as «parecenças» entre Bernardo Soares e Álvaro de Campos:
No «Livro do Desassossego», escreve Soares/Pessoa: «Quantos Césares fui, aqui mesmo, na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação; mas os Césares que foram estão mortos, e a Rua dos Douradores, isto é, a Realidade, não os pode conhecer.» E Álvaro de Campos, em «Pecado Original»: «Sou quem falhei ser:/Somos todos quem nos supusemos. / A nossa realidade é o que não conseguimos nunca. (…) Quantos Césares fui! /Quantos Césares fui! / Quantos Césares fui!»
Não fosse ele um «empregado de escritório» (como boa parte dos homens de letras, sem esquecer o jurista Kafka), talvez Soares/Pessoa não nos tivesse deixado esta alegoria do poeta pequeno-burguês: «O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim, por fora. E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução.»
Como ensinava a Álvaro de Campos o seu mestre Caeiro: «O único sentido íntimo das coisas/É elas não terem sentido íntimo nenhum.» Sobretudo para Soares e Pessoa, dois desolaDORES metafísicos na Rua dos DouraDORES.
João Rui de Sousa, «Fernando Pessoa empregado de escritório», 2ª edição, revista e aumentada, Assírio & Alvim, 2010, 218 páginas