Sketches proto-hitlerianos
António Rego Chaves
Quando nos perguntamos como foi possível o nazismo, recorremos quase sempre a historiadores que pacientemente nos começam por evocar o papel fulcral que o iníquo Tratado de Versalhes desempenhou no surgimento da aberrante ideologia veiculada por «Mein Kampf». Explicam-nos depois que a prolongada estagnação da economia, a brutal inflação e o desemprego galopante que assolaram a Alemanha após a Primeira Guerra Mundial tiveram também um papel decisivo nas aberrações que culminariam com o «fenómeno» dos campos de concentração e extermínio. Talvez alguns não esqueçam, por outro lado, de nos pôr em relevo quanto os sucessivos desentendimentos entre comunistas e sociais-democratas foram responsáveis pela ditadura hitleriana e pela Segunda Guerra Mundial.
O inglês Christopher Isherwood (1904-1986), que viveu na capital alemã durante os primeiros anos do terceiro decénio do século XX, não tinha decerto por objectivo escrever uma tese ao apresentar esta série de sketches que nos revelam pensamentos e actos de berlinenses coetâneos de Hitler. A verdade, porém, é que, ao «descer» aos submundos dos homens e mulheres que foi conhecendo durante a sua estada, vai encontrando os sintomas que lhe permitem diagnosticar precocemente o (ir)resistível êxito do nazismo.
Nessa mesma época, um lúcido austríaco, Wilhelm Reich, em obra que não parece ser hoje politicamente correcto, entre marxistas como entre freudianos, sequer recordar («A Psicologia de Massas do Fascismo»), esforçara-se por demonstrar que o nazismo configura «uma filosofia da vida e uma atitude específica em relação ao homem, ao amor e ao trabalho». Christopher Isherwood, com o seu olhar muito britânico, não nos diz outra coisa: mostra-nos, ainda que «de raspão», como as pessoas de facto viviam e sentiam o que se passava na conturbada Alemanha proto-hitleriana. O quadro obtido é a um tempo asfixiante, sórdido, terrífico.
Foi o próprio autor quem nos alertou para o «segredo» da obra, seguindo a lição de um dos seus mestres, Edward Morgan Forster, o escritor de «A Room with a View»: «É preciso conceder pouca importância às cenas importantes e inversamente. Isso produz um efeito desconcertante. É um tipo absolutamente novo de acentuação, como se falássemos uma nova língua.»
As palavras isoladas e as expressões que nos ajudam a penetrar na atmosfera de Berlim começam por surgir como que por acaso, na descrição de uma situação, no relato de um «fait-divers», num diálogo banal: judeu, ariano, nazi, prussiano, gigolô, prostituta, assalto, revolução, guerra civil, ódio, suástica, campos de trabalho, comunismo, degenerado, gás venenoso, rufião, droga, semita, capitalismo, golpe de Estado, incêndio do Reichstag, farda da SA. Mas a peste, a devastadora peste que dizimava toda essa sociedade berlinense que assistiu sem uma imensa convulsão ao fim da República de Weimar, talvez não se espalhasse apenas entre os nazis, mas estivesse também alojada entre essa gente «ariana e politicamente neutra» sem a qual a ascensão de Hitler teria sido impensável. Sem essa «maioria silenciosa», sem essas dezenas de milhões de alemães perfilados pelo medo, ou indiferentes, ou oportunistas, a ditadura hitleriana não teria sido, decerto, mais do que uma hipótese lúdica de politólogos sem emprego.
Narra Christopher Isherwood: «Um jovem comunista meu conhecido foi preso [em 1933] pelos homens da SA, levado para um quartel nazi e barbaramente espancado. Três ou quatro dias depois, foi solto e mandado para casa. Na manhã seguinte, bateram-lhe à porta. O comunista foi abri-la, com o braço ao peito – e lá estava um nazi a estender-lhe a caixa para as dádivas. Ao vê-lo, o comunista perdeu a cabeça e gritou-lhe: ‘Não te chega teres-me batido? Ainda te atreves a vir pedir-me dinheiro?’ Mas o nazi limitou-se a sorrir com ar trocista. Ora, ora, camarada! Nada de disputas políticas. Lembra-te de que vivemos no Terceiro Reich! Somos todos irmãos! Tens de fazer um esforço para te libertares desse estúpido ódio!»
«Allerhand! Allerhand!», «Parece impossível! Parece impossível!», murmuravam, quando muito, os «melhores», ou seja, os cúmplices passivos do nazismo. E seguiam o seu caminho egoísta, regressavam a casa, às mulheres e aos filhos, sabe-se lá se reavivando estafadas desculpas para o seu cauteloso alheamento perante as atrocidades que ocorriam à sua frente e à sua volta e de que tinham sido vítimas homens que também desejavam regressar a casa, às mulheres e aos filhos. Pouco importará saber, neste contexto, se, como interroga o autor, existe nos humanos uma espécie de instinto natural favorável à liberdade. O facto é que muitos milhões de pessoas, ou nunca o conheceram, ou, se alguma vez o tinham conhecido, o perderam. O sistema ajudava-as a perdê-lo. Como diz um protagonista deste livro, «talvez nos alemães esse instinto não seja muito forte». É claro que não se pretende assim atingir os que não baixaram os braços e resistiram a Hitler, tal como os alemães cujos nomes são venerados, no domínio da cultura, desde há séculos, um pouco por todo o mundo: mas, para a grande massa, a dúvida parece ter sido lícita durante um decénio.
Ia-se já muito longe na abjecção, como fica demonstrado pelo autor, antes de cometidos os crimes contra a Humanidade pelos quais o nazismo se tornou responsável. Para quem, no Vaticano e no resto da Europa, tal como nos Estados Unidos, alegou nada ter sabido, na época, acerca do que se passava na Alemanha, fosse em relação aos judeus, fosse no que respeitava a opositores políticos, a ciganos ou a homossexuais, este livro, editado em 1939 mas já antes parcialmente publicado, poderia ter constituído uma «reportagem» fidedigna capaz de impedir qualquer surto de germanofilia. Não foi isso, porém, o que em muitos casos sucedeu – e ainda hoje são visíveis as sequelas deixadas pela Segunda Guerra Mundial, bem evidentes após a reunificação alemã e nas andanças da chamada «União Europeia».
Christopher Isherwood, «Adeus a Berlim», Quetzal, 2011, 263 páginas