António Rego Chaves
Há quem leia os clássicos por obrigação, mas há também quem os leia por devoção: atrevemo-nos a prever que muitos re(lerão) pelo simples gosto de (re)ler as «Ilusões Perdidas» de Honoré de Balzac. Obra publicada entre 1837 e 1843, encontra-se associada, não apenas pela data em que foi apresentada ao público, mas pelas preocupações expressas, a uma outra, dada à estampa em 1842-1843, por Eugène Sue – «Os Mistérios de Paris». Que não se escandalizem os que tomam Sue por um autor de «literatura de cordel». Basta recordar que ele ousou escrever um livro intitulado «Os Mistérios do Povo ou História de uma Família de Proletários através dos Tempos», entre 1849 e 1856, texto onde advogava algumas das teorias socialistas de Charles Fourier e que viria a ser condenado pelos tribunais como «sedicioso», para termos a certeza de que o paralelo não é descabido.
Ou sê-lo á na medida em que é uso considerar Sue um «progressista», ao passo que Balzac – ao contrário da opinião de Victor Hugo – não passaria de um «reaccionário»? A verdade, porém, é que ambos possuíam em alto grau o dom inestimável de saber olhar e ver a realidade que tinham perante si – ainda que Balzac de alguma forma se conformasse com as injustiças sociais que talvez considerasse insuperáveis, porque decorrentes da «natureza humana». Pouco importa se este era um génio e se Sue possuía apenas um enorme talento: importa, sim, que ambos nos ajudam a entender, como poucos, a sociedade francesa da primeira metade do século XIX.
Fixemo-nos no escritor agora traduzido para português, que António Lobo Antunes «informa», no «prefácio», ter morrido com 49 anos, mas que de facto nasceu em 20 de Maio de 1799 em Tours e faleceu em 18 de Agosto de 1850 em Paris, com 51 anos. «Pormenor» sem importância, talvez imperdoável a simples jornalistas, mas desculpável a grandes prosadores. Quanto à «nota biográfica» com que nos brinda o editor, também não acerta: dá-o com nascido a 18 de Agosto de 1799 e falecido em Agosto de 1850, em dia que não se digna indicar. Os leitores não mereceriam mais?
Mas vamos ao essencial, o jornalismo e a literatura franceses de que nos fala a parte mais importante desta obra, com o título «Um Grande Homem da Província em Paris». O poeta Lucien Rubempré, personagem central do livro, natural de Angoulême, jovem, belo, talentoso e…pobre, parte da sua terra para a capital francesa e aí descobrirá que não basta ter talento, ou mesmo ser um génio, para alguém se impor no sórdido mundo das letras e dos jornais: torna-se necessário negociar, transigir, chegar a compromissos e, até, por vezes, trair e abdicar de quaisquer valores éticos. A escolha é entre o labor honesto e a facilidade, a solidão e a vida mundana, a coerência interior e a obediência aos mandadores. Lucien optará pelos segundos termos destas alternativas, o que não evitará que seja trucidado pela impiedosa máquina dos interesses em jogo, da corrupção, do dinheiro.
Escreveu o marxista Georg Lukács, em 1951: «Engels explicou que Balzac, apesar de politicamente legitimista, conseguiu precisamente, nas suas obras, desmascarar a França feudal e partidária da realeza, mostrar de forma particularmente poderosa e literariamente elevada como a ordem feudal estava condenada à morte.» E, referindo-se em concreto às «Ilusões Perdidas», afirmara em 1935: «O romance mostra como a literatura (e com ela toda a ideologia) se reduz a simples mercadoria, objecto de troca, e ilustrando a ocorrência da capitalização do espírito em todos os terrenos, insere a tragédia geral da geração pós-napoleónica num quadro social traçado com mais profundidade do que o fizera o maior contemporâneo de Balzac, que era Stendhal.» (…) «Desde a produção do papel até às convicções, pensamentos e sentimentos dos escritores, tudo se transforma em mercadoria.» (…) «Por outro lado, os jornalistas e os escritores são explorados: as suas capacidades tornam-se mercadorias, objectos de especulação para o capitalismo da literatura. Mas por causa do capitalismo tornam-se explorados prostituídos: querem eles próprios içar-se até ao nível de exploradores, ou pelo menos de intermediários da exploração.»
Curioso «reaccionário», este Balzac, que «pressentiu», nas primeiras décadas do século XIX, fenómenos que Marx e Engels só mais tarde apreciariam à luz do materialismo histórico; curioso «reaccionário», este Balzac, que nos denuncia a «prostituição da literatura» no seu tempo; curioso «reaccionário», este Balzac, que se identifica, não com o ambicioso sem escrúpulos em que se torna Lucien Rubempré, o seu anti-herói, mas com a figura exemplar do incorruptível Daniel d’Arthez, um incansável estudioso que habita uma pobre mansarda de Paris, verdadeira encarnação da probidade intelectual, indiferente a quaisquer «gloríolas» e prebendas.
Ouçamos mais uma vez a lúcida voz de Lukács: «Mesmo depois de Balzac, muitos escritores descreveram a falta de princípios do jornalismo, mostraram como são redigidos artigos contra as convicções dos seus autores, mas só Balzac esmiúça o assunto tão a fundo, até às mais profundas raízes dos sofismas jornalísticos, porque apresenta os seus principais argumentos pró e contra de modo fascinante e jocoso, independentes de quaisquer convicções, e seguindo apenas as exigências do ambiente impregnado de corrupção; porque mostra artisticamente os esplêndidos dotes dos escritores corrompidos pelo capitalismo e faz ver, ao mesmo tempo, como estes conseguem transformar numa indústria rendosa e num simples virtuosismo aqueles mesmos sofismas, isto é, aquela capacidade de defender em qualquer problema o pró e o contra, de modo atraente e persuasivo, de acordo com as diferentes exigências do momento. Devido ao nível elevado no qual Balzac a apresenta, esta Bolsa do espírito transforma-se numa profunda tragicomédia do espírito da classe burguesa.»
A não «perder», estas «Ilusões Perdidas»! E, a seguir, lede, em «Splendeurs et misères des courtisanes», o triste fim da aventura de Lucien Rubempré…
Honoré de Balzac, «Ilusões Perdidas», Dom Quixote, 2009, 719 páginas