António Rego Chaves
Renzo De Felice (1929-1996) foi um dos grandes historiadores do fascismo italiano, a par Emilio Gentile, Angelo Tasca ou Claudio Pavone. Autor de uma monumental biografia de Mussolini – cerca de cinco mil páginas –, sempre recusou as interpretações maniqueístas que tendiam a arredar uma explicação racional da grande popularidade alcançada pelo ditador entre os seus compatriotas dos anos vinte e trinta do século passado. Escreveu, também, uma «História dos Hebreus sob o Fascismo», na qual analisou as causas do anti-semitismo no seu país a partir de 1935.
A biografia do «Duce» fornece-nos «um imenso fresco histórico cujo assunto principal é, não Mussolini, personagem cujos limites está longe de ignorar, mas o regime fascista observado sob todos os seus aspectos, com o olhar frio do etnólogo. Este distanciamento, interpretado como o sinal de uma vontade de banalização, mesmo de reabilitação do regime e do seu chefe, valeu a De Felice ser considerado como “criptofascista” por largos sectores da intelligentsia italiana, na charneira dos anos 60 e 70.» (Pierre Milza). Associando a ideologia veiculada pelo ditador ao contexto político e cultural saído do Risorgimento oitocentista, integrava o fascismo numa linha lógica da evolução das mentalidades em Itália, facto que o tornaria num alvo de intensa campanha de críticas e, até, de violentos ataques pessoais. No entanto, talvez nada mais tivesse feito do que cumprir com rigor o que Angelo Tasca considerara ser o dever indeclinável de qualquer estudioso da revolução levada a cabo pelos «camisas negras»: «Definir o fascismo é, antes de tudo, escrever a sua história.»
O cerne da questão residia no facto de Renzo De Felice ter confrontado sem rodeios os italianos com o seu passado filofascista, recusando qualquer interpretação susceptível de tranquilizar as consciências de quantos pretendiam «esquecer» o amplo apoio recebido pelo «Duce» por parte de milhões e milhões dos seus compatriotas. Certo que o regime monárquico, os militares ou os comunistas funcionaram, com eficácia variável, como forças capazes de atenuar uma completa submissão da população aos desígnios do ditador. Mas o historiador punha em destaque que o totalitarismo no seu país, longe de dever fosse o que fosse a Alfred Rosenberg, o principal teórico do nazismo, fora o resultado de uma dialéctica interna da sociedade italiana no seu conjunto, seduzindo grande parte das classes médias, operariado e campesinato – a que poderíamos acrescentar intelectuais como o ideólogo fascista Giovanni Gentile, o esteta nacionalista Gabriele D’Annunzio, o futurista Filippo Marinetti e tardios oposicionistas como Cesare Pavese, Norberto Bobbio ou Curzio Malaparte. A verdade é que o uso sistemático da violência como arma política pelos correligionários de Mussolini, a célebre «Marcha sobre Roma» ou o bárbaro assassínio do deputado socialista Giacomo Matteotti dificilmente poderiam ser interpretados como passos em frente na edificação de um Estado de Direito.
A «Breve História do Fascismo» agora publicada está longe de constituir uma visão aprofundada do totalitarismo que subjugou a península italiana durante duas décadas. Trata-se de textos provenientes de uma obra audiovisual e multimédia, ferida de evidentes lacunas no que diz respeito a aspectos tão importantes como as questões económicas, o movimento sindical, as relações com o Vaticano, o ensino, o antifeminismo, a vida cultural ou o controlo dos média pelo poder político. Isto não significa uma insinuação de ausência de rigor histórico, mas a alguém como De Felice o leitor português pediria decerto muito mais que a observação «a voo de pássaro», concebida por um italiano para italianos, de factos históricos cujas personagens são hoje quase sempre ignoradas fora do seu país natal. Pena, pois, que não tenha havido o escrúpulo editorial de inserir no livro traduzido as notas de rodapé susceptíveis de encaminhar os mais curiosos para um conhecimento mínimo da biografia de dezenas de individualidades referenciadas nas quatro páginas do índice onomástico.
Relevante do ponto de vista histórico é a implacável dureza com que De Felice desmistifica a pretensa resistência maciça dos italianos ao fascismo e ao nazismo durante a fase final da Segunda Guerra Mundial. Diz o historiador: «Tratou-se simplesmente de uma espécie de “estratégia de sobrevivência”, de uma autodefesa e, juntamente, de uma tentativa de fuga de uma realidade que, fosse qual fosse o ângulo de que fosse observada, não inspira de modo algum o desejo de assumir uma posição clara. Uma atitude particularmente difundida no mundo rural, que, depois de se ter humanamente afadigado em prol dos soldados italianos em debandada ou dos prisioneiros anglo-americanos evadidos, se fecha em si próprio, nos anos da guerra civil, evitando tomar posição activa em favor de qualquer dos contendores, quer se tratasse de fascistas, de alemães, de aliados ou de resistentes.» (…) «A escolha de muitos italianos, da maioria – tanto daqueles que aderem à directiva como dos que se escondem ou vão para as montanhas – é ditada pela “defesa de si próprios”, como factor prioritário; ao lado de muitos resistentes convictos e de outros tantos fascistas convictos, muitos foram os oportunistas e os expectantes.»
Um Italo Calvino («O Atalho dos Ninhos de Aranha») ou um Curzio Malaparte («A Pele») já haviam reaberto esta ferida mal cicatrizada do orgulho nacional italiano. E, tal como a Renzo De Felice, muitos foram os seus contemporâneos que não lhes perdoaram tal ousadia, recorrendo mesmo à ameaça física como argumento contraditório de peso irrefutável. A verdade nua e crua, porém, parece hoje ter-se tornado bem mais forte do que as piedosas mentiras de alguns «patriotas» italianos sobre o fascismo e a Resistência. Eis, sem dúvida, um louvável progresso a registar no campo da investigação histórica…
Renzo De Felice, «Breve História do Fascismo», Casa das Letras, 2005, 193 páginas