António Rego Chaves
Tanto a Igreja Católica como Hans Küng dispensam qualquer apresentação: a primeira porque já dura há quase dois mil anos, o segundo porque se tornou célebre como um dos mais brilhantes teólogos católicos do século XX, ainda que «mal amado» pelas altas instâncias eclesiásticas e proibido de ensinar as suas «heterodoxias» por João Paulo II. Uma recente entrevista com Bento XVI – ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, vulgo «Santo Ofício» – parece em nada ter alterado tal condenação.
Mas o que importa neste livro vai muito para além de «pequenas histórias» pessoais, ocupando-se o autor de toda a evolução que arranca dos primórdios da Igreja de Pedro e Paulo e da estratificação da hierarquia católica, passando pela Idade Média, pela Reforma e pela Contra-Reforma, pelo Iluminismo, pela Revolução Industrial, por Leão XIII e pela Rerum Novarum, por Pio XII e pelo Holocausto, por João XXIII e pelo Concílio Vaticano II, fechando com João Paulo II e com a hegemonia do Opus Dei. O que importa, de facto, é o que foi feito da palavra de Jesus desde as Cruzadas contra os «infiéis», das execráveis fogueiras da Inquisição e das guerras fratricidas entre cristãos, cabendo-nos averiguar como foi possível que a venerável Igreja perseguida da Antiguidade se tivesse transformado em odiosa Igreja triunfante. E saber o que ainda persiste do Sermão da Montanha nas sempre misteriosas caves do Vaticano – se é que ainda aí se pode viver tal mensagem à luz da lição de João XXIII.
Desde as primeiras linhas, o autor desfaz qualquer equívoco quanto à sua atitude perante o cristianismo: «Apesar de toda a minha experiência de quão impiedoso o sistema romano pode ser, a Igreja Católica, enquanto comunidade de crentes, continua a ser ainda hoje o meu lar espiritual.» De que se trata, pois, nestas páginas, é de confrontar o «cristianismo real» praticado pelo Papado com o utópico «cristianismo ideal» do Novo Testamento – tal como durante muito tempo foi hábito comparar o «socialismo real» dos países da Europa de Leste com o utópico «socialismo ideal» de algumas obras de Karl Marx. «Nem Marx, nem Jesus»? A selecta fórmula de Jean-François Revel inundou os salões parisienses, teve o seu efémero êxito, mas vale apenas o que vale um superficial e astucioso jogo de palavras. Pouco mais que nada, ou mesmo nada, sobretudo para quem ainda recordar quanto a Revolução Francesa da liberdade, da igualdade e da fraternidade foi beber ao cristianismo primitivo.
Marcado pelo Concílio Vaticano II, em que participou como especialista nomeado por João XXIII, sublinha Hans Küng: «Reconhece-se que Roma pediu recentemente perdão pelos monstruosos erros e atrocidades do passado – mas, entretanto, a administração e inquisição actuais continuam a produzir outras vítimas. Dificilmente qualquer das instituições da nossa era democrática lidaria com tanto desprezo com os críticos e com os que, dentro das suas próprias fileiras, têm opiniões diferentes, e nenhuma discrimina tanto as mulheres – proibindo os contraceptivos, o casamento dos sacerdotes e a ordenação de pessoas do sexo feminino. Nenhuma polariza em tal grau, e mundialmente, a sociedade e a política com as suas rígidas posições em questões de aborto, homossexualidade e eutanásia – posições sempre revestidas de uma aura de infalibilidade, como se fossem a vontade do próprio Deus.» (…) «Estou convicto de que qualquer teologia e qualquer concílio, por muito bem compreendidos que sejam em relação ao seu tempo e ao tempo que os precedeu, devem, na medida em que se afirmam cristãos, acabar por ser julgados pelo critério do que é cristão. E o critério do que é cristão – também de acordo com a opinião dos concílios e dos papas – é a mensagem cristã original, o Evangelho, aliás, a figura original da cristandade: o Jesus da Nazaré concreto e histórico, que para os cristãos é o Messias, aquele Jesus Cristo de quem deriva a existência de todas as Igrejas cristãs.»
O teólogo é, por vezes, implacável, mas sempre intelectualmente irrepreensível, como ao sentenciar: «Quando a Igreja não realiza a causa de Jesus Cristo ou a distorce, peca contra o seu próprio ser e perde esse ser.» Ou ao colocar-nos, preto no branco, a questão crucial enfrentada no século XIII pela hierarquia eclesiástica e pelos crentes em geral: «A Igreja Católica devia ser uma Igreja segundo o espírito de Inocêncio III ou o espírito de São Francisco de Assis?», isto é, deveria ter optado pela centralização, legalização, politização, militarização e clericalização ou, muito pelo contrário, será que deveria ter-se consagrado aos ideais da pobreza, da humildade e da simplicidade? Ou, ainda, ao reconhecer que, nos tempos da Reforma, «Lutero exortou a Igreja a regressar ao Evangelho de Jesus Cristo, que ele sentia como palavra viva nas Sagradas Escrituras, e em especial nos textos de São Paulo». Fica-nos a quase-certeza de que as autoridades eclesiásticas romanas, estribadas numa reiterada infalibilidade papal em matéria de fé desde o Concílio Vaticano I (1869-1870), acabaram por definir e impor aos obedientes leigos uma religião incapaz de harmonizar a sua prática quotidiana com o espírito e a letra do Novo Testamento. Apenas uma quase-certeza? Ou será que, como dizia o grande teólogo Karl Rahner, «Jesus não teria percebido nada disto»?
Hans Küng não esconde que considera ter sido João XXIII o Papa mais importante do século XX, não poupando críticas a Leão XIII na última fase do seu pontificado, a Pio X, a Bento XV, a Pio XI, a Pio XII (o «ensurdecedor silêncio» sobre o Holocausto não poderia deixar de ser vivamente denunciado, ainda que explicável – mas não justificável – por múltiplas razões diplomáticas, ideológicas e mesmo religiosas, como a estafada questão do «povo deicida»), a Paulo VI e a João Paulo II que, pelo seu conservadorismo e pelo seu restauracionismo, terá sido o principal protagonista da inequívoca «traição» ao Concílio Vaticano II. E parece ficar serenamente a espera de João XXIV e do Vaticano III, agora atrasados pelo pontificado de Joseph Ratzinger...
Hans Küng, «A Igreja Católica – Breve História, Grandes Temas», Círculo de Leitores, 2004, 235 páginas