António Rego Chaves
Quarenta anos depois do termo do II Concílio do Vaticano (1963-1965), eis um balanço das perspectivas tornadas possíveis por João XXIII. Ângelo Cardita, José Eduardo Borges de Pinho, José Carlos Carvalho e João Duque, todos eles teólogos e todos eles leigos, expõem, dissecam e comentam alguns dos luminosos textos que poderiam ter operado uma autêntica revolução coperniciana na Igreja Católica do século XX. Cristãos, agnósticos ou ateus, muçulmanos, budistas ou hinduístas, todos deveriam conhecê-los. Para que não se ignore o seu impacte ideológico, para que fiquem registados na memória de todos, para que sejam divulgados «urbi et orbi».
Ângelo Cardita escreve sobre «A Liturgia à luz de uma história dos efeitos da Sacrosanctum Concilium», José Eduardo Borges de Pinho analisa «A Constituição Dogmática Lumen Gentium», José Carlos Carvalho ocupa-se da «Dei Verbum», José Duque centra a sua atenção na «Gaudium et Spes». Lido e relido cada um destes bem documentados ensaios, persiste a interrogação: está vivo ou está morto e enterrado o Vaticano II? A sua longa agonia já não oferece dúvidas a ninguém. Se está ainda vivo ou jaz morto, embora não enterrado, talvez se possa discutir. Contextualizemos:
O bispo auxiliar de Lisboa, Carlos Azevedo, não alimenta ilusões: «Na vertente litúrgica ficou-se na epiderme (celebrante voltado para o povo, cânticos mais modernaços) da renovação. Os pontos doutrinais mais profundos, sobretudo em Portugal – onde a ignorância religiosa continua a ser grande –, não foram aprofundados pelo Povo de Deus.» (…) «A mentalidade continua a ser a mesma. Mudou o aspecto exterior mas não mudou a atitude. O interior das pessoas ainda não mudou. Há documentos oficiais que falam em administrar os sacramentos, mas é uma linguagem totalmente ultrapassada. Os sacramentos não são para administrar, mas para celebrar. Nós não somos donos da graça nem dos sacramentos.»
Terá terminado a tendência para a cruzada, em benefício do diálogo? Será que os leigos passaram a ser considerados adultos pelos «pastores»? As conferências episcopais conquistaram algum poder perante o Papado? As perguntas falam por si. Também nestes aspectos não se registou autêntica ruptura com o «regime» de Pio XII.
António Marcelino, bispo de Aveiro: «As grandes linhas conciliares estão, em muitos sectores e espaços, em muitas comunidades e grupos, em muitos membros da Igreja, aguardando compreensão e implementação, sobretudo quando implicam conversão de mentalidades e de atitudes. Os órgãos de comunhão e de participação avançam a medo; o reconhecimento do papel do laicado, com os seus direitos e deveres, está longe de se generalizar; a compreensão da vocação universal à santidade toca a estranheza de uma linguagem com pouco sentido; a complementaridade das vocações e dos carismas na Igreja não rompeu ainda alguns escalões das diferenças honrosas.»
Preto no branco, o célebre teólogo Hans Küng, que participou no Vaticano II como especialista nomeado por João XXIII, denuncia as contradições entre a teoria e a prática de João Paulo II: «Para o exterior, comprometeu-se com os direitos do Homem, mas no interior recusou-os aos bispos, aos teólogos, e em primeiro lugar, às mulheres», proibindo-lhes o uso da pílula e negando-lhes a ordenação sacerdotal. (…) «Pregou contra a pobreza maciça e a miséria do mundo, mas, ao mesmo tempo, com as suas concepções em matéria de controlo dos nascimentos e de explosão demográfica, tornou-se co-responsável por essa miséria.» (…) «Apresentou-se como corifeu do ecumenismo, mas hipotecou fortemente as relações com as Igrejas ortodoxas e com as Igrejas reformadas.» (…) «Escarneceu da colegialidade entre o papa e os bispos decidida no Concílio.» (…) «Procurou o diálogo com as grandes religiões mas, ao apresentar as religiões não cristãs como formas deficitárias em matéria de fé, desqualificou-as desde o primeiro momento.»
À luz de tais testemunhos, não será de estranhar que percorramos este livro sem grandes surpresas, tendo presente que «os cristãos em geral não leram, nem conhecem, o Concílio. Mas não só os fiéis leigos! Quantos padres chegam a ser ordenados na mesma situação?» (Ângelo Cardita). Não deixar «sabotar» de vez o Concílio Vaticano II não constitui uma tarefa a que apenas seriam chamados os católicos, mas obra a empreender por todos os crentes cristãos ou não cristãos, bem como pelos agnósticos ou pelos ateus. Em nome da tolerância, da racionalidade, do respeito mútuo.
Tematize-se a estrutura da Cúria Romana, com Borges de Pinho: «Se a Igreja não é uma democracia (…) também não é, muito menos pode ser, seja por inércia vinda do passado ou por incapacidade de entender as exigências do presente, uma ‘monarquia’ ou uma ‘aristocracia’». Mergulhe-se nas fontes, sublinhe-se a «Lumen Gentium»: «Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida recta.» Olhe-se de frente a realidade presente: «São evidentes o cansaço e a letargia do movimento ecuménico. O campo deste diálogo teológico desviou-se nitidamente para uma área muito mais vasta que é a área do diálogo inter-religioso.» Compare-se o já antigo «ateísmo prático» como o actual «ateísmo da indiferença». Evoque-se o «desarmamento moral que afecta e corrói as próprias comunidades cristãs». Recorde-se que «a Bíblia é dos livros mais vendidos em todo o mundo, mas dos menos lidos» (José Carlos Carvalho). Medite-se sobre tudo o que há para meditar, esclareça-se tudo o que há para esclarecer, modifique-se tudo o que há para modificar. Uns dispor-se-ão a pensar e agir em nome do Homem, outros em nome de Deus. Pouco importa. Importa, sim, que a arrogância e o sectarismo de alguns pretensos «donos da verdade» sejam banidos do diálogo ecuménico e inter-religioso, para que se torne possível trilhar o caminho aberto pelo Vaticano II. Importa um futuro liberto dos terríveis morticínios dos últimos decénios. Importa a civilização.
«Vaticano II – 40 anos depois», organização de Ângelo Cardita, Ariadne Editora, Dezembro de 2005, 155 páginas