O leitor de língua portuguesa que quisesse informar-se acerca da biografia de Victor Hugo (1802-1885) dispunha até agora de um texto já um tanto envelhecido mas honesto e digno da melhor atenção: o assinado por André Maurois, publicado em França há mais de 50 anos e editado entre nós pela Livros do Brasil. Tem hoje ao seu alcance o primeiro volume de outra obra, da autoria de Max Gallo, prolixo romancista e historiador, que a Europa-América acaba de lançar no mercado. Uma boa notícia?
Deixemos responder um reputado especialista de Victor Hugo, Jean-Marc Hovasse: «O livro de Gallo nada tem a ver com uma biografia, é um produto marketing.» (…) «Nenhum dos seus inimigos mais virulentos, nem Sainte-Beuve, nem Planche, nem Veuillot, nem mesmo Biré, teria tido a crueldade de lhe desejar um tal tratamento.»
A verdade é que, como fez notar Jean-Luc Douin no jornal «Le Monde», se trata «quase de um esboço de folhetim para a televisão, de um desfile de anotações por vezes confusas.» (…) «Gallo imagina o que Hugo pensa, aquilo de que se lembra, as suas impressões, as suas ambições, as suas pulsões.» A ficção trucida a realidade…
Ora, o que se espera de um biógrafo de Victor Hugo é sem dúvida bem mais do que uma crónica subjectiva e romanceada da sua infância, maturidade e velhice, das suas paixões ou paixonetas, da sua vida pública: narrar a(s) trajectória(s) de Hugo significa antes de mais integrá-la(s) na história económica, social, cultural, religiosa e política do século XIX, sem a qual a personagem estudada não pode ser hoje entendida, nomeadamente pelo grande público cujas duvidosas expectativas a obra de Max Gallo parece eleger como alvo privilegiado de comercialização.
Recorda o notável historiador Michel Winnock, citando Alexis de Tocqueville: «Em França o mundo político (do século XVIII) estava como que dividido em duas províncias separadas e sem comércio entre elas. Na primeira administrava-se; na segunda eram estabelecidos os princípios abstractos sobre os quais qualquer administração deveria assentar. » (…) E sintetiza: «Este diagnóstico do século XVIII aplica-se também aos intelectuais do século XX.» (…) Pelo contrário, «a maior parte dos escritores do século XIX (…) assume o dever de participar na acção. Disputam os lugares parlamentares, por vezes até se tornam ministros, mesmo chefes de governo.» (…) «Decidem assumir as suas responsabilidades e as suas convicções. Aristocratas pelo nascimento ou aristocratas pelo saber e pelo talento, consideram que, se pensam e comentam a política, também devem fazê-la.» Exemplos mais conhecidos? Benjamin Constant, Chateaubriand, Guizot, Balzac, Lamartine, Hugo, Tocqueville, Lamennais, Michelet, Sainte-Beuve, Mérimée, Renan, Proudhon, Vallès… (À margem: como escreveu Alexandre Dumas em «As Minhas Memórias», «o homem literário não é senão o prefácio do homem político»). Continua Winnock: «Mas não são apenas os homens que se empenham no combate: numerosas mulheres, que na época não podiam aspirar a obter qualquer mandato, desafiam todas as barreiras jurídicas e reprovações sociais. Apenas alguns nomes célebres: Madame de Staël, George Sand, Flora Tristan, Daniel Stern (pseudónimo de Marie d’Agoult), Pauline Roland, Louise Michel…
Quanto ao autor de «Os Miseráveis», há que situá-lo neste contexto. Segundo Jacques Seebacher, eminente hugoano, a sua evolução política não é a de um oportunista, ainda que possuísse o sentido da oportunidade («saber o que é necessário dizer ou fazer num certo dia e não noutro») e, ao mesmo tempo, o sentido da contra-oportunidade («ousar dizer, certo dia, o que não tem necessidade de dizer, para fazer escândalo, insistir sobre o inesperado, surpreender»).Certo é que, como releva o mesmo especialista, há uma nítida «coincidência» entre a sua evolução ideológica e a evolução histórica francesa. Outros considerarão, apesar dos 19 anos de exílio suportados pelo poeta, que se registaram na sua vida «coincidências» que facilmente se poderiam confundir com oportunismos. Monárquico absolutista, assumido antiliberal e católico ultraconservador no início da carreira, ser-lhe-á concedida uma tença vitalícia de mil francos durante o reinado de Luís XVIII, altura em que o Ministério do Interior o «premiará» com uma pensão anual de dois mil francos. Recebe a Legião de Honra sob Carlos X, a cuja sagração dedicará depois uma ode que lhe valerá múltiplas manifestações de generosidade do soberano. Com o correr dos tempos, tornar-se-á membro da Academia Francesa e da Câmara dos Pares, partidário da monarquia constitucional, republicano, deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia Legislativa, anticlericalista, resistente ao golpe de Estado do futuro Napoleão III, deísta, espírita e mitólogo cristão sem Igreja, filosocialista. Enfim, percorrerá, tal como o seu século em França, quase todas as estações do espectro ideológico, embora demarcando-se da Comuna em 1871 mas advogando, logo a seguir, a causa dos vencidos que pedem asilo na Bélgica até ser expulso de Bruxelas e reivindicando depois em França a amnistia, quer como simples cidadão, quer como senador da República. Até ao fim da vida, bater-se-á pela aprovação de leis capazes de assegurar a liberdade de pensamento, de crença, de consciência, de imprensa, de reunião, de associação sindical, transformando-se em guardião da consciência republicana, em defensor dos oprimidos e da redistribuição da riqueza, do restabelecimento do divórcio, da instauração do ensino primário laico, gratuito e obrigatório, em arauto dos Estados Unidos da Europa, dos direitos da mulher e da criança, da abolição da escravatura e da pena de morte. Quando morre, dois milhões de pessoas acompanham o cortejo fúnebre ao longo das ruas de Paris. É a apoteose do octogenário que resumira a sua vida a duas palavras, «solitário e solidário» e que, segundo alguns dos seus biógrafos, anotara, ainda na adolescência, num modesto caderno de apontamentos: «Quero ser Chateaubriand ou nada.»
Max Gallo, Victor Hugo, vol. I, «Eu sou uma força que avança», Publicações Europa-América, 2005, 420 páginas