António Rego Chaves
George Orwell (1903-1950) é, para a maioria dos seus leitores em Portugal, apenas o autor de «1984», «Animal Farm» e «Homage to Catalonia». Os seus ensaios, muito menos conhecidos e agora muito parcialmente editados pela «Antígona», merecem, no entanto, por vários motivos, a nossa melhor atenção. Como acentua Desidério Murcho na introdução, «o interesse principal de Orwell não é a sua interioridade, mas antes a realidade exterior». Por outro lado, «é um escritor político, mas não ideológico, no sentido em que não procura distorcer a realidade para melhor a adaptar às suas ideias».
No mais longo e importante texto inserido nesta breve antologia, com o título «O Leão e o Unicórnio: o Socialismo e o Génio Inglês» (1941), o autor, depois de enumerar aquelas que, em seu entender, eram as características da economia, da sociedade, da política interna, da política externa e das mentalidades inglesas da época, em plena Segunda Guerra Mundial e durante os bombardeamentos de Londres pelos alemães, esboça um autêntico programa mínimo de «socialismo democrático» para o a Grã-Bretanha e o seu Império. Diz: «A ideia subjacente ao fascismo é irreconciliavelmente diferente da que subjaz ao socialismo. O socialismo tem por objectivo, em última análise, um estado mundial de seres humanos livres e iguais. Dá como garantida a igualdade dos direitos humanos. O nazismo pressupõe precisamente o oposto. A força motriz por detrás do movimento nazi é a crença na desigualdade humana, a superioridade dos alemães relativamente a todas as outras raças, o direito da Alemanha de dominar o mundo.» Assinala, depois, uma das razões políticas mais relevantes dos graves problemas sociais a que parecia condenado o seu país: «Depois de vinte anos de estagnação e desemprego, o movimento socialista britânico, na sua totalidade, foi incapaz de criar uma versão do socialismo que a massa do povo pudesse achar desejável. O Partido Trabalhista defendia um reformismo tímido, os marxistas viam o mundo através de óculos do século XIX. Ambos ignoravam a agricultura e os problemas imperiais, e ambos antagonizavam as classes médias.» Finalmente, apresenta os seis pontos do seu programa de «revolução» por meio do voto popular, os três primeiros relativos à política interna e os restantes ao Império e ao mundo:
«1. Nacionalização da terra, minas, caminhos-de-ferro, bancos e principais indústrias. 2. Limitação de salários numa escala tal que o mais alto dos salários, depois de descontados os impostos, não exceda mais do que dez vezes o mais baixo. 3. Reforma do sistema educativo em termos democráticos. 4. Atribuição imediata de estatuto de domínio à Índia, com o poder de secessão quando a guerra acabar. 5. Formação de um Conselho Imperial Geral, no qual os povos de cor estejam representados. 6. Declaração de aliança formal com a China, Abissínia e todas as outras vítimas dos poderes fascistas.»
Note-se que nos encontrávamos no início de 1941, altura em que a vigência do Pacto Germano-Soviético impedia George Orwell de situar a médio prazo a URSS no seu pensamento planetário – ainda que o autor, durante a Guerra de Espanha, integrado nas milícias antiestalinistas do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), tivesse observado com indignação as tentativas dos comunistas ditos «ortodoxos», porque ligados a Moscovo, para assumirem o controlo absoluto das forças republicanas. Os já citados «Homage to Catalonia» (1938), «Animal Farm» (1945) e «1984» (1949) traduzirão bem o desencanto deste genuíno homem de esquerda perante a contradição entre a realidade por si vivida e o sonho pelo qual lutou e a que chamava «socialismo democrático». Aliás, para ele como para muitos dos seus contemporâneos, durante a Segunda Guerra Mundial o que estava de facto em causa era a igualdade – «a ideia ‘judaica’ ou ‘judaico-cristã’ de igualdade – que Hitler veio ao mundo para destruir».
Menos vinculados à prática política, os restantes ensaios desta colectânea – «Por que escrevo» (1946), «A Política e a Língua Inglesa» (1946), «Verdade Histórica» (1944), «Linguagem Religiosa»(1944), «As Fronteiras entre a Arte e a Propaganda» (1941), «Literatura e Totalitarismo» (1941), «Um Enforcamento» (1931) – são, no entanto, como o anterior, fascinantes pela clareza e, também, pela extrema argúcia do autor. Desde revelar-nos que escreve para «ver as coisas como são», ou «porque há uma mentira qualquer» que pretende denunciar, ou para «empurrar o mundo noutra direcção», isto é, «contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático»; a garantir-nos que «a linguagem política foi concebida para fazer as mentiras parecerem verdades e o assassínio, respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao inefável»; a asseverar-nos que «aquilo que existe de realmente assustador no totalitarismo não é o cometer de ‘atrocidades’ mas o ataque ao conceito de verdade objectiva, ao afirmar que controla o passado como controla o futuro»; a evidenciar-nos que, na civilização ocidental, a crença na imortalidade individual «parece muitíssimo mais importante do que a crença em Deus», mas que, mesmo entre os intelectuais católicos, «o declínio da crença na imortalidade pessoal tem sido tão importante como a ascensão da civilização da máquina»; a acentuar-nos que, «num mundo em que o fascismo e o socialismo se combatiam entre si, qualquer pessoa que pensasse tinha de tomar partido, os seus sentimentos tinham de se manifestar não apenas na sua escrita mas também nos seus juízos acerca da literatura» e, ainda, que esta «tinha de tornar-se política, porque qualquer outra coisa teria implicado desonestidade mental»; a alertar-nos para que, «se o totalitarismo se tornar mundial e permanente, o que conhecemos como literatura tem de chegar ao fim»; a relatar-nos, com premeditado distanciamento, a desumanidade de um enforcamento a que assistiu na Birmânia – sempre George Orwell, cidadão do mundo, manifesta a mesma probidade, o mesmo respeito por todos os povos, a mesma exigência de verdade. Não terão sido estas as menos admiráveis das suas virtudes.
George Orwell, «Por que escrevo e outros ensaios», Antígona, 2008, 155 páginas