António Rego Chaves
Foi Agostinho (354-430), Bispo de Hipona, nascido em Tagaste, na Numídia, hoje território da Argélia, obreiro de múltiplas «conversões»: «converteu-se» a si próprio e «converteu» ao catolicismo muitos dos seus concidadãos, não abdicando de recorrer ao uso da força militar do Império Romano para alcançar este último e «cristianíssimo» objectivo missionário.
Basta olhar a sua quilométrica bibliografia (113 livros, 218 cartas, mais de 500 sermões) para verificar como é inchada a parcela de títulos que inclui a palavra «contra». Suspeita-se de que quem tanto soletra tal preposição já foi ou teve a tentação de ser a favor do que combate: ora, sucedeu que o futuro doutor da Igreja abraçou até cerca dos 30 anos o maniqueísmo – e talvez por isso nunca cessou, depois, de o atacar. Mesmo quando nos narra o seu infantil furto das peras ou a sua juventude de «fornicações» e de [«pecaminosa»!] paixão pelo teatro, para depois nos falar da «conversão» à Filosofia, pela mão de Cícero, e da «conversão» à religião fundada pelo persa Manes, é para desembocar em acerbas críticas ao maniqueísmo, cuja violência só se torna explicável por um ressentimento de convertido.
«Conversão» é um termo temerário: implica a ideia segundo a qual nos deslocamos do erro para a verdade, das trevas para a luz, do «pecado» para a «pureza». Aliás, na mesma época, Agostinho não se limitou a transitar do maniqueísmo para o catolicismo romano, também trocou uma união de facto, da qual lhe nascera um filho, Adeodato, pela apologia do celibato. Não que a «concupiscência» o tivesse deixado de atormentar; mas fugiu dela como o Diabo da Cruz – e, ao que nos diz, logrou escapar-lhe. Quanto ao amor entre humanos, o de depois do sexo, «o amor que é só o amor» de que sabia Dante, o seu silêncio é de bradar aos Céus. Será que o renegou?
Baptizado em 387, ei-lo aclamado sacerdote em 391e, em 395/396, sagrado Bispo de Hipona. Carreira brilhante, a deste retor, ao que parece de etnia berbere, que se apressa a combater, com todo o fulgor da sua inteligência, maniqueístas, donatistas, pelagianos. Mais tarde, nas «Retractações», será só Agostinho contra Agostinho, emendar-se-á, corrigir-se-á, dará ditos por não ditos. Mas, nas «Confissões», redigidas entre 397 e 401, fala para Deus nos primeiros dez livros – e quase nos ignora. Só nos últimos três aborda as Escrituras, como que condescendendo em dirigir-nos a palavra. Claro que considera seu dever «converter-nos» à tal «única religião verdadeira» a que, desta vez, e de uma vez por todas, se «converteu»: feitas as contas, nunca poderá negligenciar o seu papel – a sua «sagrada missão» – de bispo.
Disse o Padre António Vieira que, «no livro de suas ‘Confissões’ publicou Santo Agostinho os seus pecados, e no livro de suas ‘Retractações’ as suas ignorâncias». As primeiras seriam «erratas da vida», as segundas «erratas da doutrina». E ensina-nos um especialista em Literatura de Roma Antiga que «o termo ‘Confessiones’ encerra em si a profissão de fé (‘confessio fidei’), a admissão da culpa (‘confessio culpae’) e o reconhecimento da grandeza de Deus (‘confessio laudis’)». Fiquemo-nos pelos latifúndios da culpa, decerto os mais ao alcance da mão. Sem esquecermos que o «santo» escreve, à sua maneira, um salmo, a adicionar aos 150 da Bíblia hebraica.
O filósofo judeu Martin Buber (1878-1965) chamou a atenção para o facto de Agostinho ter sido um dos primeiros pensadores que ousaram conjugar a existência na primeira pessoa. Acresce que as «Confissões» ostentam um suspeito desprezo pela literatura, mesmo quando nos falam de Vergílio e da Eneida, e que o seu autor considera um «adultério» para com Deus «a amizade deste mundo». Chegado à idade da razão, o eclesiástico abandona, pois, todas as pretensas «vacuidades», «futilidades» e «bagatelas» a que se entregou, para se queixar a Deus de que «os filhos dos homens observam as convenções das letras e das sílabas recebidas dos primeiros falantes», mas que «desprezam o pacto eterno da salvação perpétua de ti recebido». Não surpreende, vindo de quem vinha – um incorrigível professor de retórica.
«Concede-me a castidade e a continência, mas não já», orava Agostinho, à beira da sua definitiva «conversão». E explicava-se perante Deus: «Pois receava que me ouvisses de imediato e de imediato me curasses da doença da concupiscência, que eu preferia que fosse saciada, e não extinta.» Os seus olhos caem então, ao acaso, sobre a Epístola aos Romanos (13:13-14): «Nem em comezainas e bebedeiras, nem em libertinagens e dissoluções, nem em rivalidades e invejas, mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne na concupiscência.» Conclui o catecúmeno, agora fortalecido pela sua nova fé, a católica: «Não quis ler mais, nem era preciso. Pois, logo que acabei esta frase, derramando-se no meu coração como que uma luz de segurança, todas as trevas da dúvida se dissiparam.»
Sublimes, nada menos que belas e sublimes, são as páginas que Agostinho, teólogo, filósofo, místico, consagra, no Livro X, aos «vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens veiculadas por toda a espécie de coisas que se sentiram». Aqui, tal como, logo a seguir, no Livro XI, ao desenvolver os temas da eternidade e do tempo, liberta-se da obsessão de enumerar os «pecados» que cometeu e voa alto, ao encontro do Deus em que crê. O poeta que há nele vence – e reduz a zero o fanatismo.
Escreveu Voltaire que «Santo Agostinho foi o primeiro a dar crédito a essa estranha ideia [de «pecado original»], digna da cabeça quente e romanesca de um africano debochado e arrependido, maniqueísta e cristão, indulgente e persecutório, que passou a vida a contradizer-se a si próprio.» Pena que não tenha dedicado umas palavras à memória, à eternidade e ao tempo, tal como surgem nas «Confissões»: decerto acharia tom à altura de Agostinho.
Santo Agostinho, «Confissões», Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, 417 páginas