Amores gregos (Frederico Lourenço)

António Rego Chaves

Vi e ouvi Frederico Lourenço uma única vez, há poucos meses, na televisão. No programa onde foi entrevistado evidenciou ser alguém invulgarmente culto, ponderado, brilhante na exposição de ideias e factos. Exigi de mim que o leria tão cedo quanto possível. E aqui estou a dar conta do recado, depois de ter sabido que este professor universitário, nascido em 1963, já traduziu, além de duas tragédias de Eurípides, a «Odisseia» (em verso) e se encontra a levar a cabo idêntica proeza no que diz respeito à «Ilíada», sendo autor de múltiplos ensaios publicados em revistas da sua área de investigação (Línguas e Literaturas Clássicas) e de uma trilogia no domínio da ficção. Além disso, deu este ano à estampa, pela mão da «Livros Cotovia», a obra «Grécia Revisitada», que constitui uma fascinante introdução à poesia, ao teatro e à filosofia gregos, «acessível a um público não especializado».

O primeiro livro da trilogia («Pode um Desejo Imenso») pareceu-me pecar, porém, por uma displicente ausência de caridade para quem não seja um conhecedor profundo da cultura greco-latina e, sobretudo, de toda a poesia de Camões. No entanto, como aliás já sublinhou Vasco Graça Moura, a obra projectava a ficção na própria dimensão ensaística – ousadia que muito me maravilhou, porque sem tradição em Portugal. Quanto ao segundo tomo («O Curso das Estrelas»), ainda que menos salpicado, aqui e ali, por inegáveis tiques de «scholar» oxoniano, também não escapava a alguma exibição de hermética sapiência, embora mais bem temperada pelo hábil desenvolvimento da intriga romanesca. Mas vamos ao terceiro («À Beira do Mundo») – que foi afinal aonde o autor quis chegar e constitui, este sim, um texto sempre apaixonante, não apenas pelas estórias que narra, como pela coragem moral que evidencia ao abordar, com subtileza e profundidade, alguns dos delicados tabus com que se confrontam homossexuais masculinos inseridos num meio universitário lisboeta, seja como alunos, seja como docentes. Diria que se trata de uma espécie de romance policial dos afectos em que o problema é saber se existe(m) vítima(s), o que estimulará a curiosidade do incorrigível «voyeur» de vidas alheias que é o leitor compulsivo de obras de ficção suspeitas de alta cumplicidade com o real quotidiano.

Frederico Lourenço talvez não tivesse precisado de escrever senão este último livro da sua trilogia para tornar bem claro algo que muito importa pôr em relevo quando se fala de homossexualidade, aliás como de heterossexualidade: não apenas uma dimensão corpórea, física, mas sobretudo uma teia de vertentes psicológicas – solidão, encontros e desencontros, amizade, amor, paixão. Porque de sentimentos se trata entre as personagens homossexuais com que o autor nos confronta – e não de acrobacias sexuais. Lembre-se Cesariny: «E que quer dizer isso de amor só amor? /partes alíquotas de dois na cama/ que Dante nunca viu aos pés de Beatriz/Petrarca também não ao pescoço de Laura/Abelardo esse então no ventre de Heloísa.» Ou, bem mais terra-a-terra: «o pra baixo e pra cima também os êmbolos fazem…»

Adiante. O aspecto espiritual das relações interpessoais, ignorado por certa literatura que tenta reduzir as experiências homossexuais masculinas à pornografia, raras vezes nos tem sido transmitido por aqueles que ousam abordar o tema – e que, embora falando com conhecimento de causa, directo ou indirecto, não se preocupam com captar a alma que pode estar presente em qualquer experiência erótica. Nuno, Vicente e Filipe, personagens centrais de «À Beira do Mundo», são indivíduos condenados a lutar para ser respeitados na sua orientação sexual – seres humanos em minoria, à partida condenados por cada olhar dos outros, perplexos herdeiros de anónimos medievais queimados vivos em execuções públicas. As suas angústias, os seus dramas de identidade, a sua coragem de se assumir surgem passo a passo, nas atitudes, nos gestos, nas escolhas que fazem perante a sociedade hostil onde vivem e com a qual têm de coexistir ou conviver. Famílias, colegas, instituições – tudo contribuirá para os encerrar num gueto que muito facilmente os poderá levar ao alcoolismo ou à droga, à mais profunda das depressões, mesmo ao suicídio.

É precisamente a cultura grega do autor de «À Beira do Mundo» que «ajudará» Nuno, sua principal personagem, a traçar para si um outro rumo que não o de se deixar esmagar por aqueles que tenderão a tomá-lo como alvo de comiseração, ironia ou desprezo. Para quem conhece bem, como Frederico Lourenço, o «Banquete» – talvez o mais belo diálogo platónico –, bastaria ter presente o discurso de Pausânias nele inserido, onde se distingue um amor celeste «que pode durar a vida inteira, em que a gratificação sexual não é o factor mais importante», e um popular, «que não transcende a dimensão sexual» (as palavras entre aspas retiro-as de «Grécia Revisitada»). Pouco importa, aliás, que o misógino Pausânias estivesse a fazer uma apologia de alguma – e apenas de alguma – homossexualidade masculina, excluindo sem apelo toda a heterossexualidade – mesmo toda – do amor celeste. A verdade é que fica bem expressa a superioridade da beleza espiritual sobre a beleza física – e que só a primeira pode aspirar àquele amor único e recíproco que até o medo da morte será capaz de vencer. Nuno, neste último livro da trilogia, não abdicará de o conquistar – como decerto lhe teria sugerido a perene sageza de Platão.

Frederico Lourenço, «À Beira do Mundo», Cotovia, 2003, 205 páginas