O século XV em reportagem
António Rego Chaves
António Borges Coelho acaba de fazer publicar o terceiro volume da sua «História de Portugal»: segue na esteira das primeiras naus que se fizeram ao Atlântico, detém-se na viagem do Gama até à Índia. De tudo, é certo, tínhamos já extensos relatos: mas não ainda a grande reportagem do século XV assinada por um historiador que nos escreve em pleno século XXI.
Porque Borges Coelho é, na sequência de Fernão Lopes, Gomes Eanes de Zurara, Rui de Pina, João de Barros, Garcia de Resende, Duarte Pacheco Pereira, em quem se apoia, um vivíssimo repórter do que não pôde viver – mas sente de dentro, como todo o homem que se sabe ancorado à terra que o viu nascer. Pela sua mão, que é também a mão segura dos cronistas que vai lendo e relendo – «os seus textos são tesouros, sem eles ficaríamos às escuras» – assistimos à tomada de Ceuta, à Batalha de Alfarrobeira, às andanças de Afonso V, dito «O Africano», à chegada das naus a Calecut.
Comecemos pelas raízes. Do seu ofício diz-nos, com a rara humildade dos que muito sabem: «Na investigação histórica construímos e acumulamos factos, identificamos personagens, espaços, ferramentas, casas, um sem número de objectos afeiçoados pela mão do homem. Nunca são demais mas, se os deixarmos a granel, não nos servem de muito para recriarmos no papel, no digital e na mente, o real vivido. Temos que ordenar o caos. Hierarquizar. A vida não é plana, nem a História, os acontecimentos não têm todos a mesma grandeza e jogam em relação. O quotidiano move-se. Procuramos um sentido, mesmo que provisório, mesmo que se declare que não tem sentido. A tentativa de encontrar nexos, sequências, de integrar particulares no todo, não deixará de voltar, não deixará de nos atormentar.»
Avisara já, à cautela: «A memória colectiva centra-se na figura do rei. É a estrela da pirâmide mesmo quando mal acende. A memória tende a atribuir-lhe a iniciativa e a glória dos feitos. Por vezes tece alguns retratos fortes. Em volta do rei, os grandes; num segundo plano, os meãos. Os de baixo quase desaparecem.» Sublinhe-se: «quase». Porque o narrador está alerta, será como sempre foi memória desse «quase» que dava pelo nome de «arraia-miúda» e que a tantos incomodou e parece ainda incomodar.
Quem foram os nossos ascendentes? Sem dúvida, esses navegantes que «levavam a cruz pintada nas velas, mas podiam cair sobre a presa como o albatroz. Trocam gestos, cerimónias, roupas, vocábulos. Experimentam as armas e os corpos. O barco é o veículo, a casa, a fortaleza, o templo, a oficina, o armazém, o porta escravos, o porta navios, o caixão.» (…) «Um Infante investiu nas navegações e um rei fez dobrar o Cabo das Tormentas para chegar à Índia. Mas os navegantes eram homens comuns…»
Homens comuns, os navegantes? Sim, mas também os que financiavam as navegações eram – oh se eram! – homens comuns: «A aventura portuguesa alimentava-se do corso, do comércio, da pilhagem dos campos marroquinos e dos reais para Ceuta, pagos pelos camponeses de Trás-os-Montes, de Entre Douro e Minho e da Guarda. A gesta e os sacrifícios das navegações chegavam, pela notícia e pelo imposto, aos cantos mais recônditos do reino.» Havia, porém, algo de peso a ter em conta: «A revolução e a guerra pela independência tornaram o povo miúdo mais livre e insubmisso».
Retrato matizado dos descobridores, pela escrita admirável de Borges Coelho: «A doutrina dos clérigos justificava o injustificável, não só aos nossos olhos como à luz dos Evangelhos: era permitida a captura e o roubo porque não tinham o que se deve ter e crer. Mas há uma grandeza imensa. No ousar, no empunhar da vida a toda a hora para enfrentar o mar sem vida e sem terra, o vento, a noite, os homens que não têm cabelo para agarrar, mas podem disparar setas ervadas de peçonha. Há um espanto enorme perante a paisagem, os homens e as mulheres de África. Temem a Natureza mas sentem que não conseguirá travar a sua determinação e coragem.»
As páginas consagradas à Batalha de Alfarrobeira são das mais intensas e «vividas» deste volume: não apenas porque o historiador nos dá a possibilidade – também antes sugerida por Vitorino Magalhães Godinho – de apreender o confronto como um facto contemporâneo, porque nos diz respeito a todos e acerca do qual é quase impossível não tomar partido, mas porque fica apontado o pior que entre nós grassou e grassa, qual praga que nos foi rogada. Diz o autor: «Este relato da ‘Crónica de D. Afonso V’ faz parte do Evangelho nacional. Constitui um exemplo clássico de liquidação política e física e também de que o desespero e o desejo de vingança levam a uma espiral sem saída. Rui de Pina está pelo lado do infante D. Pedro, mas não lhe oculta os erros. O relato é quase cinematográfico.»
O historiador «esqueceu-se» de acrescentar – mas certamente não pelas mesmas razões por que Camões se «esqueceu» de Alfarrobeira n’ «Os Lusíadas» – que nunca abdicou de tomar partido e de transpor a porta estreita dos que escrevem (bem) o que pensam e agem de acordo com o que escrevem. Este não será o menor dos seus méritos, evidente como nunca quando analistas reaccionários do nosso passado, invocando uma pretensa «objectividade», instilam venenozinhos em «portinguês» computadorizado e se fazem passar por angélicos alienígenas no país que lhes deu cidadania.
Rui de Pina, ao relatar a morte do conde de Abranches, o amigo do Regente D. Pedro, em Alfarrobeira, espalhou duas versões do mesmo grito de raiva e de desprezo, que foram, «ora fartar, rapazes» e «ora fartar, vilanagem». Fosse como fosse, não nos parece que qualquer delas seja hoje passível de ser adoptada: primeiro, porque a vilanagem – ou seja, os chamados «boys» – não se farta, é tão voraz quanto insaciável; depois, como disse Fernão Lopes, devido à nossa «afeição natural pela terra em que somos gerados»…
António Borges Coelho, «História de Portugal», volume III, «Largada das Naus», Caminho, 2011, 310 páginas