António Rego Chaves
História da Igreja, História do Cristianismo? O autor, professor emérito de História da Igreja na Universidade de Boston, optou pelo segundo termo da alternativa – e a nosso ver com pleno êxito. Pena que o espaço concedido pelos editores do original não lhe tenha permitido deter-se um pouco mais em certos temas teológicos «quentes», como o suscitado pela «História Imparcial da Igreja e dos Hereges desde o princípio do Novo Testamento até ao Ano do Senhor de 1688», de Gottfried Arnold (1666-1714). Na verdade, segundo sublinha, «para Arnold a essência da fé cristã não é dogmática, eclesial, jurídica nem ‘culta’, mas antes a piedade pessoal de cada ser humano. Daí que os hereges da História da Igreja muitas vezes transmitam a fé mais autenticamente do que os maiores teólogos e instituições eclesiais.» Terão sido os primeiros três séculos da nossa era uma época cristãmente «perfeita»? Será que o imperador Constantino comprometeu para todo o sempre a mensagem de Cristo, ao transformá-la em «ideologia oficial» de Roma, abrindo caminho a uma Idade Média em que a Igreja Católica se tornou inseparável do Poder? Esta é, talvez, uma questão fulcral levantada pelo autor – questão que aborda não apenas com inteligência e erudição, como, por vezes, com um oportuno e cáustico sentido de humor inesperado em obras do género.
Diferença entre tradição e tradicionalismo? Jaroslav Pelikan distinguira já com brilho insuperável os dois conceitos: «A tradição é a fé viva dos mortos; tradicionalismo é a fé morta dos vivos.» Daí também o fascínio pelos «hereges», que nada mais são, feitas as contas, do que cristãos que ousam pensar pela sua própria cabeça e fazer escolhas coerentes com o resultado da sua aventura intelectual. Se não existem verdades imutáveis e tudo tem de ser analisado à luz do relativismo histórico, a doutrina, sempre potencial fonte de intolerância, não passará de «uma cerca eléctrica destinada a impedir as vacas eclesiásticas de se extraviarem de casa»? Será concebível que Jesus tivesse o objectivo de levar os seus seguidores a viverem sob «um rei, uma lei e uma crença», como pretendiam autoproclamados monarcas «cristãos» da Idade Média?
Vejamos um caso de heresia. O sacerdote Ário (260-335) ensinava que Jesus Cristo não existia antes da sua criação por Deus. Tinha esta tese apoio nos Evangelhos? Decerto que sim, dado que Cristo era ali descrito como «o primogénito de todas as criaturas» (Colossenses, 1,15). Não obstante, o Concílio de Niceia (325) levaria à condenação e exílio de Ário. Tratamento «exemplar» para um dissidente da ortodoxia definida pelo Doutor da Igreja Atanásio de Alexandria que, aliás, e por cinco vezes, também não escaparia ao exílio, consoante os ventos e marés das verdades absolutas…
O autor começa por considerar as «Confissões» de Santo Agostinho como «um acto terapêutico para aquilo que agora poderíamos chamar uma crise da meia-idade», mas logo salienta «o seu enraizamento da fé cristã no conceito de amor». Escreve: «Caritas, segundo Agostinho, é primariamente o amor a Deus tornado possível porque Deus amou primeiro a Humanidade. O amor a Deus é a virtude fundamental: todas as outras virtudes não passam de expressões desta.» E, referindo-se à Teologia da História expressa em «A Cidade de Deus», transcreve esta fórmula lapidar do Bispo de Hipona: «Dois amores fizeram as duas cidades: a terrena fê-la o amor de si até ao desprezo de Deus; a celeste fê-la o amor de Deus até ao desprezo de si.»
As querelas sobre poder temporal e espiritual, conciliarismo e monarquismo papal, ordens militares e mendicantes, não escapam à lição de Carter Lindberg, tal como as ideias de Santo Anselmo, «o pai da escolástica», Pedro Abelardo, Pedro Lombardo, Bernardo Claraval, Tomás de Aquino ou Francisco de Assis, inseridos com mão de mestre nos respectivos contextos económicos, sociais, políticos, culturais e religiosos.
Lutero ocupa nesta excelente síntese o lugar destacado que lhe cabe de pleno direito como rigoroso seguidor da Bíblia, responsável pela Reforma na Alemanha e seu inspirador noutros países europeus. O Pietismo e o Iluminismo vieram depois abrir novos rumos ao pensamento teológico cristão e à vivência da fé, debilmente revistos pelo Concílio de Trento e pela Companhia de Jesus. O Pietismo, porque «batalhava em favor da individualização e interiorização da vida religiosa»; o Iluminismo, porque, à sombra tutelar da filosofia de Kant, se propunha a audaciosa tarefa de situar «a religião nos limites da simples razão» e encarava Cristo, «não como o Redentor, mas como o arquétipo moral, ou modelo de vida santa, a ser imitado pela Humanidade».
Atingido o século XIX, a Igreja Católica inicia um dos seus mais rudes combates de ideias, desta feita tentando opor um esclerosado clericalismo ao secularismo saído da Revolução Francesa. Pio IX encarna a luta anti-modernista: impõe o dogma da Imaculada Conceição de Maria, condena o racionalismo, o comunismo e as sociedades bíblicas, repudia a separação da Igreja e do Estado, a liberdade religiosa e a instrução pública sem domínio clerical, reafirma a autoridade da hierarquia católica para regular assuntos públicos como o casamento e o divórcio. Não contente com tal programa ditatorial – que de facto não passa de um arrogante «caderno reivindicativo» –, sustenta que tem direito aos seus próprios tribunais e poderes policiais e, no Vaticano I, declara-se infalível em questões de fé e moral. Leão XIII, mais cordato, proporá, na «Rerum Novarum», um equilíbrio entre o capital e o trabalho, até então negligenciado pelo Papado. Tarde de mais, o marxismo estava bem vivo e de excelente saúde.
Pio XII, que dogmatizou a Assunção de Maria, distinguir-se-ia pelo seu «ensurdecedor silêncio» perante o extermínio de milhões de vítimas do Holocausto. Quanto ao Vaticano II, saudado por uma legião de católicos, protestantes e ortodoxos, gizaria vários trilhos de diálogo ecuménico que paulatinamente seriam bloqueados por João Paulo II, Ratzinger e o Opus Dei. Mas essa já é também uma «história» do presente…
Carter Lindberg, «História do Cristianismo», Teorema, 2007, 268 páginas