António Rego Chaves
Quase mil e cem páginas consagra José Eduardo Franco ao que chama «O Mito dos Jesuítas». Lido com respeitosa atenção tão imponente monumento, deparamos com um «Posfácio» de Eduardo Lourenço onde o prestigiado ensaísta nos sublinha, em tom tão aveludado quanto firme – e «jesuítico» – que, embora não duvide da boa-fé do autor, este escolheu «mais o lugar de defensor oficioso da Companhia [de Jesus] do que o de um acusador público». Não se pense, pois, que o teólogo e historiador, aliás vinculado à Universidade Católica e à revista Brotéria, quis transmitir-nos «a verdade» acerca da actuação dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente: visou, isso sim, expor-nos a «lenda negra» que cobriu e por vezes ainda cobre a imagem da Companhia de Jesus, para negar, por via de regra, a fidedignidade das razões para tal «invenção».
Eis, pois, uma esforçada tentativa de «branqueamento» do papel desempenhado na «metrópole» e no ex-império pelos discípulos de Inácio de Loyola. Fosse constituída por «cordeiros» ou por «monstros», certo é que a Companhia, e não exactamente por acaso, seria três vezes expulsa de Portugal e, até, extinta pelo Papado. Evoque quem quiser as missionações de Francisco Xavier, Manuel da Nóbrega e António Vieira: mas não se deixe de erigir em tema de meditação a nefasta ânsia de proselitismo, assente na arrogante «certeza» da superioridade do cristianismo em relação às crenças dos «selvagens» ou dos «infiéis» que se pretendeu «converter», usando de violência física ou mental, ou de ambas, à ideologia dos conquistadores. E que o Papa Ratzinger não argumente, sobretudo após as suas recentes e infelizes declarações no Brasil, que a exigência de respeito pela cultura do Outro só surgiu nos nossos tempos, nem acuse de anacronismo histórico quem a invoque em favor de africanos, americanos ou asiáticos de quinhentos: basta que (re)leia o grande humanista católico Michel de Montaigne.
O autor acaba por reconhecer, aliás, que não houve fumo sem fogo, isto é, que os «pretextos» do Iluminismo, do Liberalismo e da República para banir os Jesuítas do território português não foram inventados de raiz: é assim que, já quase no final da sua trabalhosa obra, mas apenas em discretíssima nota de pé de página, esboça o seguinte tímido libelo acusatório: «É certo que o mito dos Jesuítas se alicerça em princípios de realidade, nos quais procura afirmar a sua força persuasiva. É indiscutível, por exemplo, que os Padres da Companhia tenham adquirido uma significativa ascendência, influência e até domínio em termos políticos, educativos e religiosos. (…) É indiscutível que conceberam e aplicaram metodologias (rasando, por vezes, a fronteira aceitável pela ortodoxia católica) de evangelização junto de povos mais resistentes à aceitação e assimilação do Cristianismo. (…) «Como também foi verdade a resistência que os Jesuítas mostraram em adaptar-se às novas correntes de pensamento no século de setecentos e a dificuldade que tiveram em superar o velho paradigma escolástico.» Não restam, pois, quaisquer dúvidas a José Eduardo Franco, seja acerca do papel tantas vezes determinante que os jesuítas desempenharam durante séculos junto de monarcas, da Corte e, em geral, de todas as classes dominantes, seja procurando orientar a governação e monopolizar o ensino, seja evangelizando graças a métodos dificilmente conciliáveis com princípios cristãos os povos das terras encontradas pelas caravelas dos Descobrimentos, seja bloqueando a aprendizagem, em nome da bafienta escolástica aristotélico-tomista, do pensamento científico, filosófico e teológico desenvolvido em toda a Europa culta do século XVIII.
Mesmo sem evocar o currículo do autor – que, aliás, talvez muito nos pudesse explicar acerca da sua visceral «alergia» ao Iluminismo, ao Liberalismo e à República –, é no entanto lícito perguntarmo-nos, na sequência da lição oitocentista recebida de Almeida Garrett, como se tornou possível dissecar sem o mínimo ímpeto crítico «a mais perigosa e perniciosa de todas as oligarquias, a eclesiástica», sem sequer salientar que «hoje é útil e proveitoso lembrar como os povos e os reis se uniram para debelar a aristocracia sacerdotal e feudal» –, a qual pouco, muito pouco, ou nada, absolutamente nada, teve a ver com o cristianismo dos Evangelhos. É lícito perguntarmo-nos, de forma nada aveludada, mas decerto não menos firme do que a utilizada por Eduardo Lourenço no «Posfácio» acima referido, que raio de «reino cadaveroso» é este onde vivemos, que ainda não conseguiu arrumar de vez a questão dos méritos e deméritos da Companhia de Jesus, os primeiros talvez inseparáveis do alto exemplo espiritual de Inácio de Loyola, aliás raramente seguido pelos seus «herdeiros», os segundos indissociáveis das malfeitorias da Inquisição e da colonização, do obscurantismo, da censura intelectual e do reaccionarismo político que nos atormentaram, é certo que com alguns «abençoados» hiatos, até 25 de Abril de 1974. É lícito perguntarmo-nos, finalmente, por que razão, sob o espesso manto de uma respeitável investigação académica, se esconde, em obra editada com o apoio do Ministério da Ciência, da Universidade de Lisboa, do Instituto Camões e da Câmara Municipal de Oeiras, este tortuoso e «jesuítico» panegírico dos inacianos.
Opondo à «diabolização» dos Jesuítas a «diabolização» de Carvalho e Melo, de Joaquim António de Aguiar, de Teófilo Braga ou Afonso Costa, o autor em nada contribuiu para clarificar o que de facto esteve em jogo durante os reinados de D. José I , de D. Pedro IV e nos primeiros tempos da República, a saber, a luta sem tréguas entre poderes políticos progressistas e uma reaccionária organização religiosa internacionalista que, tal como o Opus Dei desde os últimos decénios do século XX, logrou impor a sua retrógrada ideologia à Igreja Católica. Mas não seria esse, decerto, o alvo de tão douta quanto empenhada dissertação acerca da Companhia de Jesus…
José Eduardo Franco, «O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (Séculos XVI a XX)», Gradiva, 2006 e 2007, Volumes I e II, 627+463 páginas