António Rego Chaves
Mario Lacruz (1929-2000) não foi apenas o notável ficcionista catalão que nos deixou «El Inocente», «La Tarde» e «El Ayudante del Verdugo». Ao longo de toda a vida desenvolveu um trabalho editorial de grande qualidade na Plaza & Janés, na Argos Vergara e na Seix-Barral e acumulou, no dizer de seu filho, «um metro e meio na vertical» de obras não publicadas. Após a morte do autor, os herdeiros deram-nos já a conhecer este «Gaudí», «Intemperancia» e «Un Verano Memorable y Otras Historias».
Há quem especule sobre os verdadeiros motivos que levaram Lacruz a reter na sua «arca» pessoana tantos originais, ele que, devido às funções que desempenhava, tudo poderia ter publicado sem dificuldade nalgumas das mais prestigiadas editoras espanholas. Seria «um dos autores mais auto-exigentes que já existiram»? Ou «a necessidade e os condicionamentos sociais foram mais fortes» do que uma abnegada «busca de autenticidade cósmica»? Gaudí representaria para ele um «alter-ego» imaginário, «aquele que, no fundo, teria querido mas não pôde ser, alguém dedicado por completo à sua vocação artística»? Rosa Montero observa: «Gaudí perde os amigos, perde os amores, é um velho solitário e excêntrico alienado pela repercussão da sua própria obra. Talvez Mario receasse que lhe sucedesse algo semelhante, talvez acreditasse nessa velha dicotomia que eu considero falsa e que opõe a vida à obra. (…) Talvez, sabe-se lá, também fosse uma questão de vitalidade física. O Mario nunca me deu a impressão de ser uma pessoa fraca, mas apenas um tanto ou quanto frágil.»
Fosse como fosse, o Gaudí nascido em Réus no ano de 1852, morto em 1926 por um eléctrico na capital catalã e romanceado por Lacruz é um homem genial, oscilando entre um tímido mutismo e um explosivo «mau feitio», apostado em levar a cabo literalmente a todo o custo as suas obras, da Casa de Vicens (1883-1888) à sua última e inacabada aventura artística, a Sagrada Família (1883-1926), do Palácio Güell (1886-1889) ao Parque Güell (1900-1914), da Casa Batló (1904-1906) à Casa Milá (1906-1910), mais conhecida por «La Pedrera». Os seus últimos anos, inteiramente dedicados à construção da catedral, passa-os, como ele próprio escreveu, «sem família, nem clientes, nem fortuna, nem nada», totalmente entregue à construção do templo que concebera para a «sua» Barcelona e em cuja cripta viria a ser sepultado.
Quando, em 1998, os bispos da Catalunha decidiram meter ombros à tarefa de beatificar e mesmo canonizar Antoni Gaudí, muitos leigos e laicos terão ficado estupefactos. No entanto, não era a primeira vez que surgia uma tentativa de o conduzir aos altares, pois já em 1926 se verificara idêntica pretensão, embora sem consequências positivas. Em 1992, a Associação pró-Beatificação de Antonio Gaudí, criada por um influente «lobby» ligado ao Opus Dei, voltara à carga e começara por conseguir que o arquitecto fosse declarado «servo de Deus». Vencida esta primeira etapa para a beatificação de um leigo, o fiscal eclesiástico da causa considerou, em 1998, e uma vez atendida a pretensão que fora exposta aos bispos pela referida Associação, que só deveriam ser tomados em linha de conta os últimos quinze anos da vida de Gaudí, isto é, precisamente aqueles em que o grande arquitecto trabalhara apenas para a edificação da Sagrada Família. A mesma personagem acrescentou que «há que analisar em que grau, heróico se possível, este senhor cumpriu com as virtudes teologais e cardeais». Quanto aos promotores da iniciativa, referindo-se a três pessoas que rezaram a Gaudí, não tiveram pejo de assegurar que uma conseguira expulsar uma pedra de um rim, outra lograra ficar aprovada num exame difícil e uma terceira obtivera a graça de conquistar um importante prémio. Tudo parecia, pois, «bem» encaminhado, quando algumas vozes se ergueram para recordar a necessidade de se demonstrar que o arquitecto tinha sido autor de um «milagre», condição «sine qua non» para a beatificação e canonização. Mas o arcebispo de Barcelona Ricard Maria Carles foi lesto na resposta, ao sustentar que «para a beatificação não é necessário que se tenha produzido um milagre por intercessão do servo de Deus depois da sua morte, um extremo absolutamente obrigatório para o processo de canonização». Na mesma ocasião, o prelado asseverou também «não existir nenhuma prova da pertença de Gaudí à Maçonaria». Contudo, Josep Maria Carandell, autor de um livro intitulado «O Parque Güell, Utopia de Gaudí», obra cuidadosamente documentada com o significado simbólico de inúmeros pormenores do trabalho do arquitecto, garante que tanto este como o seu mecenas pertenciam à Maçonaria. Aliás, já antes de Carandell, Joan Llarch, em «Gaudí. Biografia Mágica», defendera tese idêntica, ao passo que outro dos seus biógrafos, Eduardo Rojo, o aproximara da Ordem Rosa-Cruz.
O autor não se debruça sobre as raízes desta temática – e talvez por isso nunca tenha considerado o seu livro pronto para ser publicado. Na verdade, a imagem que nos transmite do seu biografado é a de um grande artista que, embora partindo de uma juventude anticlerical e boémia – mas só quem não leu o Santo Agostinho das «Confissões» lhe atiraria a primeira pedra por esses motivos –, evolui sem reservas para um catolicismo isento de qualquer nota heterodoxa, vinculado a um comportamento religioso tradicionalista e respeitador das hierarquias eclesiásticas. Morrendo entregue de corpo e alma à «catedral dos pobres» que decidira edificar gratuitamente para Deus, um supremo cliente sem pressas de ver terminada a obra encomendada, foi talvez, como afirmou o teólogo Olegario González de Cardedal, «um génio, um santo e um pobre». Genialidade e pobreza, ninguém lhas regateará; quanto à santidade, bastaria evocar qualquer das suas grandes obras para que se tornasse difícil contestá-la. A Igreja Católica poderia escolher o templo expiatório da Sagrada Família, «catecismo de pedra», outros prefeririam o Parque Güell ou «La Pedrera». Tanto faz. Quem ousará hoje negar todos estes «milagres» que «o Dante da arquitectura» doou ao século XXI?
Mario Lacruz, «Gaudí, um Romance», Dom Quixote, 2006, 199 páginas