António Rego Chaves
ENCONTROS
EM
FLORENÇA
MONTAIGNE
Com que então
o vinho branco
é doce de mais
na Toscana?
Ora adeus
sieur de Montaigne
veio tratar dos rins
nesta água duvidosa
e queixa-se do álcool
qual beata invejosa?
Ora adeus
sieur de Montaigne
os florentinos também aprenderam a morrer
mas com uvas líquidas, sem a água do Arno.
GALILEU
Quê?
Quem te pôs aqui
em Santa Croce?
Decerto o Sol
depois de a Bíblia
o fazer navegar
em volta da Terra.
SAVONAROLA (1)
Florença, 1492.
A alma da tua cidade está podre.
O altar é o supermercado do clero.
Os Borgia são a imagem da Igreja:
requintados, devassos, gastrónomos.
Ergue-te, frei Giorolamo Savonarola:
há que ser labrego, casto, vegetariano.
SAVONAROLA (2)
Fanático, eu
Savonarola?
Não conheço
meias tintas
em matéria
de fé.
Cristianismo
é revolução.
Tudo o mais cheira a refogado
vindo das cozinhas do papado.
MAQUIAVEL
Eu, professor
vos confesso.
Ai dos profetas desarmados
estão à partida condenados.
Não inventei nada.
Li Tito Lívio. Virei-o
do avesso. É tudo.
Afinal o que importa
não é perder a honra
mas ganhar o mando.
(AL)MOÇO
Ao almoço, o moço
olha-o
como se ele fosse
Deus.
Não é.
Só quer passar
pelo
Tomás de Aquino
(ou seja
um doutor angélico)
do baseball.
JANTAR
Vê-se-lhe nos olhos.
Mulher apaixonada.
Súbito
num quase invisível
sinal de borrasca
fixa um ponto
sempre inexistente
entre duas estrelas.
Tudo está bem
vai acabar mal.
PÓS-ROMÂNTICO
Não fora
a cobrança das 18 mil liras
por beber na esplanada
e tudo teria sido digno
do jovem Werther
de Meister Goethe.
Mas quando os olhos
do giovanotto
deram com a conta
todo o universo romântico
(apesar da luz da Lua
sobre o Arno)
virou mercearia.
FRANCIÚ
Sai do hotel de cinco estrelas
e olha o menino
com trejeitos de ciganito.
Murmura para si:
meu bebé tão lourinho
não é como este negrito
nasceu gaulês e franciú
tem três pêlos bem cartesianos
como um brasão no olho do cu.
DOSTOIEVSKI
Nesta casa
frente ao Palácio Pitti
continuaste a glosar
o teu desespero.
Nela imaginaste
aquele príncipe «idiota»
epiléptico e sublime
quase um novo Cristo
a que chamaste
Lev Nikolaévitch Muichkine.
Tudo isto
ao lado de Anna Grigorievna.
Tua ilha encantada.
FITZGERALD (1)
Cioran é que te viu
mesmo por dentro.
Crack-up. Inferno.
Noite da alma. Pascaliano
sem Pascal. Vertigem
dos dólares. Hollywood.
To win no negócio.
FITZGERALD (2)
Sem Zelda
que isso fique
bem claro
nunca terias
pressentido
sequer
o túnel
infinitamente
escuro
do irremediável.
PONTE VECCHIO
Dante
olhos nos olhos
para Beatriz:
Melhor será
que este amor
não se extinga
voglio dire, signorìna
melhor será
que vos imagine
e nunca mais
vos veja
senão depois de morta
aqui na Terra.
Numa Vita Nuova.
FRA ANGELICO, ANUNCIAÇÃO
Porquê eu
de olhos fechados
mãe de Cristo?
Porquê eu
imolada
sem ter culpa
de nada?
Devo agradecer?
Ou basta
conceber
sem sombra
de prazer?
DONATELLO
Arrependida
essa Maddalena
que Te banhou
os pés com suas lágrimas
e os enxugou
com seus cabelos?
Arrependida
essa Maddalena
que Te beijou os pés
e os ungiu
com perfume?
Arrependida
essa Maddalena
capaz de Te amar
num verdadeiro
corpo de homem?
CIMABUE
Que Crucificação
esta
tão recente
já depois
das inundações
de 1966.
Agora
meu pobre Jesus
todos percebem
como na verdade
morreste:
afogado
em tua própria
mágoa.
GIOTTO
O cadáver
de Francisco
de Assis.
Enfim
a verdadeira
vida.
Giotto
ajoelhado.
Sorriso
fugaz
nos olhos
de Deus.
GOETHE
Pena que a paixão
por Roma não te deixasse
olhar Florença com
olhos de ver.
Pena que não tenhas
morado à beira do Arno
de Cimabue e Giotto
e Fra Angelico e Dante.
O teu Fausto
nunca teria
caído
em tão fútil
tentação.
STENDHAL
É verdade. Os mesquinhos
burgueses
de Florença não merecem
estas ruas sublimes
iluminadas por intensas
paixões medievais.
Hora a hora
os seus passos
profanam-nas.
BROWNING
Que te trouxe para Florença
ó «portuguesa» Elizabeth
Barrett a seguir Browning
ó Catarina de Camões
e que trouxe contigo
Robert sempre Browning?
Que trouxe tantos poemas
a um e a dois
tão grande festa
sem sombras
com tambores, rapto
e touros de morte?
Que almas e corpos
vos uniram para sempre
como a Orfeu e Eurídice
na nossa mitologia
de pardais domesticados?
MALAPARTE
Maledetto, maledetto toscano.
Tantos, tantos jogos de palavras
para finalmente nos revelares
que «os toscanos só acreditam
naquilo em que tocam; e são
os primeiros a crer em Deus
quando conseguem tocar-lhe
como a mão. E conseguem-no
muitas vezes, praticamente
todos os dias.»
Maledetto, maledetto toscano.
Tantos, tantos jogos de palavras
para finalmente nos revelares
que se Cristo tivesse nascido
na Toscana «tinha acabado
tudo em bem»
e que «sem dúvida alguma»
é mesmo como dizes
«estaria ainda vivo entre nós.»
E que «não havia toscano
que não se batesse à mocada
por ele.»
Maledetto, maledetto toscano.
PRATOLINI
Bastava essa tua
Crónica Familiar.
Talvez porque
todos temos
um irmão
que deixámos
desvanecer-se
em vida
dentro de nós.
Talvez porque
à tua maneira
te crucificaste
e ressuscitaste.
PAPINI (1)
Aqui
em Florença
nasceste
e morres
um pouco mais
todos os dias.
Aqui, nestas lojas
onde tudo se vende
já não faz sentido
dizer o teu nome.
Aqui Gog e o Cristo e o Diabo
enfim teu universo em extinção
(os santos os poetas os filósofos)
já só atinge os vencidos da vida.
Estás morto ó meu louco
estás morto em Florença.
PAPINI (2)
Que decadência
tão florentina, disseste:
primeiro A Divina Comédia
depois o Decameron
a seguir O Príncipe
e no fim, para que tudo
fosse reduzido à ínfima
espécie, o nariz de Pinóquio.
Estavas morto ó meu louco
estavas bem morto em Florença
mesmo antes de teres nascido.