António Rego Chaves
Número muito aguardado, este do mensário «Le Magazine Littéraire», por ter anunciado ir assinalar o cinquentenário da morte de Céline. Como seria previsível, o tema forte é a escrita e seus meandros, porque de um grande escritor se trata: sucedem-se os textos de nomes menos ou mais conhecidos do mundo da cultura, com destaque para o «Nobel» japonês Kenzaburô Ôé, homem de esquerda que considera o autor de «Viagem ao Fim da Noite» (obra admiravelmente traduzida e retraduzida por Aníbal Fernandes) «uma testemunha do século XX ao mesmo tempo que um profeta». Quanto ao seu papel antes e durante a Ocupação da França pelos nazis, nada, mesmo.
Maxime Rovere, estudioso de Espinosa que coordena este dossier, afirma: «Nunca a literatura foi mais explosiva do que nas mãos de Louis-Ferdinand Céline. Quando o seu primeiro romance apareceu na paisagem literária, Gaëtan Picon assinalou-o como ‘um dos gritos mais insustentáveis que o homem jamais emitiu’. Durante toda a sua vida de homem e de escritor, Céline nada mais fez do que pôr em música – na sua admirável ‘petite musique’ – esse grito aliás inqualificável, esse grito a um tempo animal e humanista, lançado nas incoerências da abominação e da ternura, do cinismo e da humildade, do amor e do desespero.» Sic: «nada mais fez»?
A deriva de Rovere vai acentuar-se, embora reconheça «o compromisso do autor em favor das piores ideologias». Diz: «O êxito dos seus últimos romances – «D’un chateau l’autre» (1957), «Nord» (1960) e «Rigodon» (póstumo, 1969) – mostra que a França, muito rapidamente depois da guerra, teve curiosidade em aprender a conhecer-se, olhando Céline de frente. Assim, é claro que houve um tempo para o julgar. Mas esse tempo passou. O imenso escritor surge hoje como uma testemunha preciosa, lúcida e dilacerante, do lado sombrio da França». Testemunha, mais nada?
A pretensa actualidade do apoliticismo de que Maxime Rovere se fez eco estava já, no dia em que a revista foi posta à venda, 28 de Janeiro, fora do prazo de validade. Com efeito, Serge Klarsfeld, presidente da associação «Filhos e Filhas dos Deportados Judeus de França», em carta publicada a 19 de Janeiro, indignara-se pelo facto de o escritor, conhecido pelo seu «anti-semitismo» (o termo, sabe-se, está longe de ser rigoroso, confundindo o todo com uma parcela dos semitas) fizesse parte das personalidades incluídas na lista de 2011 das celebrações nacionais do Ministério da Cultura. «Frédéric Mitterrand deve renunciar a lançar flores sobre a memória de Céline, tal como François Mitterrand foi obrigado deixar de pôr molhos [de flores] no túmulo de Pétain», advertia o «caçador de nazis».
Para Serge Klarsfeld, Céline não é, pois, digno de ser celebrado pela República Francesa que, aliás, o condenou, em 1950, a um ano de prisão, a cinquenta mil francos de multa, à indignidade nacional e à confiscação de metade dos seus bens. Afirmava Klarsefeld, em abono da sua posição: «Sei que os Armagnacs e os Bourguignons se reconciliaram nos livros de história, mas, no caso presente, haverá sempre as vítimas e os carrascos.»
A 21 de Janeiro, o visado ministro da Cultura, Frédéric Mitterrand, anunciava, a frio, a retirada do nome de Céline das celebrações nacionais de 2011, em nome dos «valores fundamentais da nação e da República». Para trás ficava uma contundente declaração, essa bem a quente, do «maire» de Paris, Bertrand Delanoë: «Céline é um excelente escritor, mas um perfeito ‘salaud’» (palavra que poderíamos traduzir por suíno, safado, canalha, ou, mesmo, pelo equivalente de ‘cabrón’, como fez o ‘El País’).
Cabeças pensantes de Paris despertaram da sua modorra. O ex-maoísta Philippe Sollers, «absolutamente aterrado», proclamou: «O ministro da Cultura transformou-se hoje em ministro da Censura.» O «sempre em bicos dos pés» Bernard-Henri Lévy jogou pelo seguro: «A comemoração não seria senão uma ocasião para recordar, nomeadamente às jovens gerações, como o mesmo homem pôde escrever a admirável ‘Viagem ao Fim da Noite’ e os abjectos panfletos anti-semitas da sua época fascista», evocando «o laço obscuro e misterioso entre o génio e a infâmia». O agora antiquíssimo «novo filósofo» Alain Finkielkraut mostrou-se, no mínimo, confuso: «Nunca um liceu de França deve ter o nome de Céline, mas não estou certo de que um tal escritor não deva ser objecto de comemoração.»
Deixando amainar as águas, surgiu o neoliberal Mario Vargas Llosa, como que fixando os prolegómenos a toda a polémica futura. Para o «Nobel» de 2010, segundo esclareceu, «a genialidade artística não é uma atenuante – antes uma agravante – do racismo», mas «a decisão do Governo francês de suspender as comemorações do cinquentenário de Céline envia uma mensagem perigosamente equivocada sobre a literatura e abre um péssimo precedente». Revelando ter lido «Bagatelles pour un massacre» e sentido «náuseas perante esse vómito enlouquecido de ódio, injúrias e propósitos homicidas contra os judeus», admitindo que «parece provado que, durante os anos da ocupação alemã, [Céline] denunciou à Gestapo famílias judias que estavam escondidas ou dissimuladas sob nomes falsos», o peruano acaba por «esquecer», porém, que o escritor nunca foi posto em causa, mas apenas a sua cidadania, sujeita ao são princípio da igualdade perante a lei.
Valha a verdade, Serge Klarsfeld, cujo pai foi, em 1943, aprisionado em Nice e deportado para Auschwitz, onde morreu, soubera pôr em evidência o cerne da questão, por palavras inteiramente adequadas às circunstâncias, no seu comunicado de 19 de Janeiro: «Nós, Filhos e Filhas dos Deportados Judeus de França, ainda aqui estamos para defender a memória daqueles em relação aos quais a França reconheceu ‘uma dívida imprescritível’.» A partir daí, o ministro só tinha uma coisa a fazer – anular a comemoração do cinquentenário da morte do cidadão Céline. E fez o que tinha de ser feito.
«Le Magazine Littéraire», Céline, Fevereiro de 2011, 98 páginas