Ser comunista nos EUA em 1950
António Rego Chaves
Num filme recente, «Good Night, and Good Luck» («Boa Noite, e Boa Sorte»), George Clooney prestou justa homenagem ao jornalista Edward R. Murrow, que nos anos 50 do século XX ousara denunciar as manipulações políticas do «pai» da caça às bruxas ditas «comunistas» nos Estados Unidos, o católico senador Joseph McCarthy, aliás muito apreciado pelo Papa Pio XII. O famoso actor e realizador visava, em paralelo, também outro alvo, ou seja, pôr em causa os falsos documentos com que se quis provar que Saddam Hussein dispunha de armas de destruição maciça e a ameaça que George W. Bush representava para a liberdade de contestar nos media a legitimidade da intervenção militar norte-americana no Iraque.
A verdade é que George Clooney fora já classificado como um «traidor» por se ter manifestado contra a presença dos EUA no Iraque, tal como muitos outros seus concidadãos, em meados do século passado, tinham sido acusados de actividades antiamericanas por serem considerados comunistas ou simpatizantes do marxismo. Em 9 de Fevereiro de 1950, num célebre discurso pronunciado em Wheelling, o senador do Wisconsin proclamara: «Tenho na minha mão uma lista de 250 pessoas que são conhecidas pela Secretaria de Estado como membros do Partido Comunista e que apesar disso ainda trabalham na Secretaria de Estado e determinam a sua política.» A lista era longa e incluía personalidades como o ex-presidente Truman, o general Marshall, Nobel da Paz e o físico Robert Oppenheimer, «culpado» de ter atrasado a fabricação da bomba atómica. McCarthy emendaria, depois, a mão: afinal não haveria senão 57 «comunistas» ou, de acordo com uma última versão, 81, incluindo homossexuais e «anarquistas»…
«Delator emblemático do macarthismo», como lhe chamou Samuel Blumenfeld, Elia Kazan, nos anos 1930 membro do CPUSA, «entregaria» os seus antigos companheiros comunistas para poder continuar a sua obra como realizador. Denunciantes foram também um Ronald Reagan, futuro presidente dos EUA, ou um de Cecil B. DeMille, em tempos muito popular pelas suas «superproduções históricas». Dashiell Hammett nunca possuiu nada em comum com tais indivíduos, pois dir-se-ia ter sempre ocupado um lugar cativo algures nos antípodas do carreirismo e do oportunismo.
O autor de «O Falcão de Malta» vira-se afastado de Hollywood em 1938, em plena era de Franklin e Eleanor Roosevelt, na sequência do seu activo apoio aos republicanos que se batiam na Guerra de Espanha contra o golpe franquista. A seguir, ingressara definitivamente no Partido Comunista e abraçara múltiplas causas que o impediriam para sempre de receber os vultosos cheques que lhe pagava a indústria cinematográfica na qualidade de autor de numerosas obras adaptadas pela Metro Goldwyn Mayer. Bate-se, entre 1938 e 1941, pelo direito de voto dos negros e de outras minorias, pela presença dos sindicatos em diversos estados norte-americanos, contra o despedimento de funcionários públicos devido a convicções ideológicas, pelos programas de acolhimento a refugiados políticos, pela libertação do líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes. O FBI está atento, esperava para actuar, elaborara durante 25 anos um arquivo que terá 278 páginas.
É neste «clima» que surge o texto dos interrogatórios agora traduzidos para castelhano, realizados em 1951 e 1953, e que constituem um documento precioso que nos ensina mais sobre a história dos EUA nos anos 1950 do que milhares de páginas consagradas à «democracia» e à «justiça» na superpotência. Acentue-se que se trata de um livro não poucas vezes monótono: às perguntas que poderiam levar à sua inapelável incriminação, Hammett retorque quase invariavelmente: «Recuso responder à pergunta porque a resposta poderia incriminar-me, apoiando-me nos direitos que me outorga a Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos».
A intervenção do senador McCarthy, em 1953, nos interrogatórios, é sem dúvida a mais ideológica e a que mais claramente nos transmite o ambiente inquisitorial em que decorriam as audiências. Observe-se o seguinte rol, que levaria a concluir que nos EUA da época se poderia ser julgado – e mesmo condenado – por mero delito de opinião: «McCarthy: Crê que o sistema comunista é melhor que o sistema em vigor neste país? Crê que o comunismo, tal como se pratica na Rússia actual, é superior à nossa forma de governo? Pensa que o comunismo americano seria um bom sistema para este país?» Mas a pergunta final desta sequência é a mais incisiva, quando o senador indaga se o escritor apoiaria a implantação do comunismo nos Estados Unidos. O interrogado responde que não e explica por que motivo: «Parece-me pouco viável, se a maioria das pessoas não o quisesse.»
O final deste diálogo é assombroso pela subtileza da resposta: Pergunta: «Senhor Hammett, se estivesse a gastar, como nós estamos a gastar, mais de cem milhões de dólares por ano num Programa de Informação com a expressa finalidade de combater o comunismo, e se o senhor estivesse encarregado desse programa para combater o comunismo, compraria as obras de uns setenta e cinco autores comunistas, distribui-las-ia por todo o mundo, com o nosso selo oficial de aprovação estampado nessas obras?»
Resposta de Hammett: «Bom, creio – é evidente que não o sei – que se estivesse a combater o comunismo, não creio que deixasse que as pessoas lessem um livro que fosse.» Comentário do inquisidor, que desejaríamos ouvir gravado, para sabermos se será lícito acrescentar-lhe o ponto de exclamação por que optámos: «Isso soa estranho na boca de um autor!»
O escritor saiu do julgamento sem ceder um palmo. Como resposta, a «justiça» dos Estados Unidos, que já em 1951 o condenara a seis meses de cárcere, fez retirar todos os exemplares dos seus livros das bibliotecas da Secretaria de Estado instaladas no estrangeiro, onde figuravam às centenas.
Interrogatorios/Dashiell Hammett, Errata naturae editores, 2011, 115 páginas