Foi o meu primeiro amigo francês. Um dia falou-se de Pascal. Era poeta e eloquente, o meu primeiro amigo francês. E sabia de cor algumas frases dos «Pensamentos». Tinha boa memória, citava sem hesitações. Depois, quando ele fez uma pausa, encontrei um pequeno espaço para lhe dizer:
- Gosto de Pascal e da sua heterodoxia. Um pouco como gosto de Unamuno.
- De quem?
- De Unamuno.
- Iú-na-miu-nô? Connais pas.
Ai, se eu tivesse dito «Pascal, não sei quem é», decerto teriam caído o Carmo e a Trindade, melhor, Notre-Dame, o Sacré-Coeur e Port-Royal pela segunda vez. Mas arranjei uma paciência nada ibérica para lhe soletrar:
- Don Mi-guel de U-na-mu-no. Geração de 98: Unamuno, António e Manuel Machado, Azorín, Baroja, Benavente, Maetzu, Valle-Inclán, Ganivet. Morreu no fim de 1936, em plena Guerra de Espanha. Escreveu «Do Sentimento Trágico da Vida», «A Agonia do Cristianismo», «Vida de D. Quixote e Sancho», dezenas de outros ensaios, de livros de ficção e de poesia dos quais deves estar farto de ouvir falar. Foi reitor da Universidade de Salamanca, onde protagonizou, com o general fascista Millán Astray, aquela célebre história dos «vivas à morte» e dos «morras à inteligência». Tinha cabeça, coração e tudo o mais, como «homem de carne e osso» que era. Uma grande cabeça, um grande coração, um grande par deles «en su sitio». Tudo em grande. Claro que sabes quem foi Don Miguel de Unamuno.
Passou-se isto há muitos anos. Tantos que já nem me lembro se a conversa azedou. Mas foi nessa altura que me apercebi, pela primeira vez, da arrogância francesa perante a cultura alheia. Infelizmente, a minha impressão – agora talvez caísse melhor falar do meu «feeling» – revelou-se-me exacta. Também infelizmente, o exemplo do meu primeiro amigo francês tem vindo a ser seguido um pouco por todo o lado: o pensamento de Unamuno é cada vez mais desconhecido pela generalidade dos europeus e cada vez mais olhado de viés pelo arrogante «grémio» dos catedráticos de Filosofia. Muito poucos o lêem, referem ou reivindicam fora de Espanha e Portugal. E, mesmo por aqui, quantos?
A «entrevista» que se segue foi realizada tomando como pretexto o centenário da «Geração de 98» e em intenção de todos aqueles que têm algum interesse em recordar Unamuno ou em travar conhecimento com o seu pensamento. As respostas são, tanto quanto possível, rigorosamente «autênticas», porque retiradas de obras do entrevistado ou a ele consagradas por grandes especialistas como Julián Marías, Ferrater Mora e Manuel Blanco. Fica-nos a convicção de que, quando o ouvimos, julgamos encontrar solução para grande parte das nossas dúvidas; só depois, passado o choque do primeiro embate, percebemos que cada uma das respostas que obtivemos dá origem a uma infinidade de novas interrogações – como Don Miguel, decerto, teria gostado. Pois não foi ele quem disse que a sua missão era «combater todos os que se resignam, quer ao catolicismo, quer ao racionalismo, quer ao agnosticismo», fazendo com que todos vivessem «inquietos e ofegantes»?
- Preocupação fundamental da sua vida?
- A fome de imortalidade, querer viver e sobreviver. Há que viver, mas há que morrer também. Sobretudo há que viver morrendo para poder morrer vivendo. O desejo de não morrer, a fome de imortalidade pessoal, é a base afectiva de todo o conhecimento e o íntimo ponto de partida pessoal de toda a filosofia humana, fabricada por um homem e para homens.
- Livros ou autores mais importantes para o seu pensamento?
- A Bíblia – muito especialmente o Novo Testamento e, nele, as Epístolas de São Paulo –, Santo Agostinho, Pascal, Espinosa, Rousseau, Senancour, Amiel, Kierkegaard, Butler, os teólogos protestantes liberais alemães, (Hermann, Ritschl, Harnack), a literatura mística espanhola (São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila), Santo Inácio de Loyola. E também Kant e James, Lutero e Schleiermacher. E poetas, muitos: os trágicos gregos, Leopardi, Antero de Quental, sobretudo os ingleses: Shakespeare, Tennyson, Wordsworth, Thomson, Byron, Browning; e, está claro, Dante.
- Por que motivo considerou Pascal seu «irmão»?
- Como eu, ele talvez não cresse. Mas, também como eu, queria crer, lutava para crer. O que faz a eterna força de Pascal é que há tantos Pascal quantos os homens que, ao lê-lo, o sentem e não se limitam a compreendê-lo. Foi ele quem escreveu: «É o coração que sente Deus, não a razão, e é isso que é a fé. Deus é sensível ao coração, não à razão.» Quando Pascal se ajoelhava para rezar ao Ser Supremo pedia a submissão da sua própria razão. Submeteu-se? Quis submeter-se. E não achou repouso senão com a morte e na morte, e hoje vive naqueles que, como nós, tocaram a própria alma nua com a nudez da sua alma. Revivi com Pascal no seu século e no seu âmbito, como revivi com Kierkegaard em Copenhaga, e o mesmo se passou com outros. Não será esta, talvez, a suprema prova da imortalidade da alma? Não se sentirão eles em mim, como eu me senti neles?
- Nunca aderiu a qualquer ortodoxia…
- Sempre me repugnaram os ortodoxos, fossem católicos ou protestantes – estes costumam ser tão intransigentes como aqueles –, que negam o cristianismo a quem não interpreta o Evangelho como eles.
- Que é a vida humana?
- Um acontecimento do foro íntimo. Mas existem um ambiente exterior, o mundo dos fenómenos sensíveis, que nos envolve e sustenta, e um ambiente interior, a nossa própria consciência, o mundo das nossas ideias, imaginações, desejos e sentimentos. Ninguém pode dizer onde um acaba e o outro começa. Certo é que viver é para o homem saber que há-de morrer, saber que tem os dias contados; a vida encerra-se com o horizonte da morte, limite incerto mas seguro, fronteira do viver. Ser é querer continuar sendo sempre.
- Existe uma vida para além da morte?
- Eu só sei da necessidade de acreditar nessa outra vida para viver esta e para suportá-la e dar-lhe sentido e finalidade. Isso da imortalidade da alma, da persistência da consciência individual, não é racional, fica fora da razão. É, enquanto problema, e qualquer que seja a solução, que se lhe dê, irracional. Racionalmente até carece de sentido pôr a questão. Tão inconcebível é a imortalidade da alma como é, em rigor, a sua mortalidade absoluta.
- Que há de comum entre a religião e a filosofia?
- Sempre pensei que o ponto de partida pessoal e afectivo de qualquer filosofia e de todas as religiões é o sentimento trágico da vida.
- Essa é uma profissão de fé contra o culto da razão?
- Há, com efeito, pessoas que parecem pensar apenas com o cérebro, ou com qualquer outro órgão específico do pensamento, ao passo que outras pensam com todo o corpo e toda a alma, com o sangue, com o tutano dos ossos, com o coração, com os pulmões, com o ventre, com a vida. E as pessoas que só pensam com o cérebro tornam-se definidores, fazem-se profissionais do pensamento. Se um filósofo não é um homem, será tudo o que queiram, tudo menos um filósofo; é, sobretudo, um pedante, que é como quem diz, um arremedo de homem.
- Não basta pensar?
- Não basta pensar, há que sentir o nosso destino. Aqueles que, sem paixão de alma, sem angústia, sem incerteza, sem dúvida, sem esperança de consolo, julgam crer em Deus, crêem apenas na ideia de Deus, mas não no próprio Deus. A filosofia é um produto humano de cada filósofo, e cada filósofo é um homem de carne e osso que se dirige a outros homens de carne e osso. Quando Hegel anunciou que «todo o racional é real e todo o real é racional» não falava como filósofo, e ainda menos como «homem de carne e osso», mas como um simples burocrata.
- A razão é inimiga da fé?
- Razão e fé são duas inimigas que não podem manter-se uma sem a outra. A razão é aquilo sobre que estamos todos de acordo, todos ou pelo menos a maioria. A verdade é outra coisa. A razão é social; a verdade, normalmente, é completamente individual, pessoal e incomunicável. A razão une-nos e as verdades separam-nos.
- Que é a fé?
- Na sua essência não é mais do que coisa da vontade, da vontade e não da razão; acreditar é, acima de tudo, querer acreditar, e acreditar em Deus é, antes de mais nada e principalmente, querer que ele exista. E, assim, acreditar na imortalidade da alma é querer que a alma seja imortal, mas querer com tal força que essa vontade, atropelando a razão, passe por cima dela. Mas não sem represálias. A mais robusta fé baseia-se na incerteza. A fé é fé na esperança; cremos no que esperamos. Só cremos naquilo que esperamos e só esperamos aquilo em que cremos.
- Nunca rezou com a razão?
- Ao rezar reconhecia com o coração o meu Deus, que negava com a minha razão. Creio em Deus, como creio nos meus amigos, por sentir o alento do seu carinho e a sua mão invisível e intangível, que me atrai, me leva e me empurra, porque tenho a consciência íntima de uma providência particular, de um espírito universal que me traça o meu próprio destino.
Morre-se só?
- Quem morre, morre só, mesmo que esteja acompanhado, porque chega um momento em que nada pode partilhar. E esta solidão suprema é o culminar de outra solidão intrínseca à vida: a solidão radical do eu, que não encontra um tu. Quando chega a morte, aí acaba a convivência com a testemunha e só fica a sua grande presença muda. Isso da solidão absoluta da morte, pois cada um tem de morrer sem companhia, é a raiz do mais fundo desespero quando se vê morrer uma pessoa a quem se quer como a si próprio. Essa é a verdadeira impotência, não o facto de não a poder salvar, mas o de não poder estar com o que morre: é o abismo.
- Um dia, o senhor escreveu: «Quero saber se terei de morrer ou não definitivamente. E se não morro, que será de mim? E se morro, nada passará a ter sentido.»
- Disse mais, não se esqueça. «Não quero morrer, não. Não quero, nem quero querê-lo; quero viver sempre, sempre, sempre; e viver eu, este pobre eu que sou e me quero e me sinto ser agora e aqui.»
- Nunca aceitou a ideia da morte?
Não, não podia. E nunca me esqueci de que teremos de deixar de existir. Aliás, sempre pensei que aquilo por que na realidade ansiamos depois da morte é continuar a viver esta vida, esta mesma vida mortal, mas sem males, sem o tédio e sem a morte. E não quebrar a cadeia das nossas recordações e da nossa identidade pessoal. Neguei-me sempre a ser aniquilado, a desaparecer para sempre com a morte.
- Mas não estava a pedir demasiado? Quem se julgava o senhor, Deus?
- Respondo-lhe com Obermann, a personagem de Senancour: «Para o Universo, nada, para mim, tudo.» Cada um de nós é único e insubstituível, nenhuma outra pessoa pode preencher o vazio por nós deixado, ao morrermos. Nunca esqueça: aquilo a que chamo o sentimento trágico da vida nos homens e nos povos é, pelo menos, o nosso sentimento trágico da vida, o dos espanhóis e do povo espanhol, tal como se reflecte na minha consciência, que é uma consciência espanhola, feita em Espanha.
- Que quer dizer com Espanha?
- Uma vasta e complexa área cultural e humana que abarca, além de Espanha, Portugal e a América hispânica e lusitana: América hispânica, América lusa, ibero-América, América Latina, ou como queiram chamar-lhe. À letra, desejaria «hispanizar a Europa», – e não «europeizar a Espanha». Mas nunca tive nada a ver, em espírito, quer com os tradicionalistas que sonhavam com as falsas glórias do passado, quer com os progressistas que se entusiasmavam com o conhecimento regenerativo. A minha Espanha é «celestial e eterna, eterna e subterrânea», para grande escândalo de tradicionalistas e de progressistas.
- Baroja escreveu que o senhor via muito pouco, se é que alguma coisa conseguiu ver, nas suas viagens pela Europa, por causa da sua feroz intransigência e da sua lamentável cegueira…
- Vi a minha terra com olhos de ver. E também a dos meus «irmãos portugueses». Quanto à França, por exemplo, nunca me seduziu. Em boa verdade, prefiro o Quixote, Velásquez, o Greco, Goya, São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, ao vinho de Bordéus, às ostras de Arcachón, a Racine, a Delacroix. Os espanhóis não são frívolos e joviais como os franceses? Pois ainda bem: esse é o nosso consolo, a nossa verdadeira glória.
- Falou dos «irmãos portugueses» e também dos «irmãos ibero-americanos». Porquê «irmãos»?
- Acho que viviam de modos muito semelhantes, senão idênticos, aos dos seus «irmãos espanhóis», mesmo quando – e quase poderia dizer-se sobretudo quando – se opuseram a eles e lutaram em favor da sua independência intelectual e política. Interessei-me muito pelas obras de Antero de Quental e Oliveira Martins, mantive relações pessoais e epistolares com Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e Manuel Laranjeira, entre outros portugueses. Amei o vosso país e os seus grandes suicidas: Antero, Camilo, Soares do Reis, Manuel Laranjeira. Meus irmãos.
- Ortega y Gasset disse de si, textualmente: «Que quer este homem, que fala e escreve sem tréguas; que atira com as palavras como se fossem pedras; que nunca está de acordo com nada nem com ninguém, incluindo ele próprio, ou pelo menos é isso o que diz? Tantas palavras e, sobretudo, tantos jogos de palavras! Não parece sério; puro ‘energumenismo’, vontade desmesurada de falar de si próprio, histrionismo intelectual.» Quer comentar?
- Que queria eu? Talvez jogar com as ideias, porque nenhuma ideia vale uma crença. Nunca me «amancebei» com qualquer ideia, com qualquer «ismo». Não encontrei em nenhuma filosofia, religião ou ideologia o suficiente para encher a minha personalidade. Eu queria crer, foi «só» isso a minha vida na Terra.
- Quando escreveu sobre o Quixote, estava a pensar sobretudo em Espanha?
- A única coisa que realmente é importante no Cavaleiro da Triste Figura é aquilo que ele ansiava ser. O mesmo posso dizer em relação a Espanha.
- Como define o Quixote?
- Tinha um fim divino: queria ser imortal. Mas também tinha um fim moral: queria ser bom. A defesa quixotesca dos ideais não é, pois, uma defesa de uns ideais quaisquer; verdadeiramente, só contam a bondade e a imortalidade. A realidade na vida de Don Quixote não foram os moinhos de vento, mas os gigantes. Os moinhos eram fenoménicos, aparências; os gigantes eram numénicos, substâncias. Só o sonho é vida, realidade, criação.
- E Sancho Pança?
- A fé dele ainda é mais admirável do que a do seu amo, porque é mais fortemente assediada pela dúvida. O habitual contraste entre o idealismo do cavaleiro e o realismo – quase o materialismo – do escudeiro não tem em conta o facto de que Sancho se vai lenta mas seguramente quixotizando. Sancho nunca pretende ser mais do que a fiel sombra do seu amo. Mas no fim demonstra ter assimilado completamente o espírito de Don Quixote, a tal ponto que o seu quixotismo é ainda mais puro do que o do seu senhor. Em última análise, Don Quixote mancha por vezes a pureza da sua fé com o orgulho da confiança em si próprio, ao passo que Sancho jamais macula a sua fé. É uma fé autêntica, porque não é uma fé em si próprio, mas no seu senhor e mestre – que se lhe apresenta como uma reencarnação do ideal.
- O «herói», afinal, deixou de ser Don Quixote, passou a ser Sancho Pança?
- Don Quixote vê gigantes onde só há moinhos; a sua coragem e a sua sede de justiça podem ser resultado de uma imaginação febril. Sancho vê que os moinhos são moinhos, e apesar disso não lhe falece a fé no amo. É uma fé repleta de dúvidas, a única verdadeiramente digna desse nome. Don Quixote acaba por desistir, mas Sancho quer que ele volte a cavalgar pela Mancha em busca da justiça ideal. Sancho é o «herdeiro» do espírito de Don Quixote – talvez seja, mesmo, a essência do quixotismo.
- Sancho Pança seria, então, um apóstolo da bondade e da imortalidade. E quem nos poderia garantir a imortalidade?
- Só Deus. Mas ninguém está absolutamente certo da sua existência. Pouco importa, aliás: a verdade é que o nosso desejo de sobreviver é mais forte do que o desejo de que Deus exista.
- Que é a imortalidade da alma?
- A imortalidade da alma pura, sem qualquer espécie de corpo ou de perespírito, não chega a ser uma verdadeira imortalidade. O ser tem necessidade do corpo e do mundo material que o rodeia. O espírito, sem a matéria, não é nada. A imortalidade pressupõe a conservação da própria identidade pessoal; se é uma continuação da vida presente, deve ser, por conseguinte, expressão da identidade do homem, que é uma unidade de corpo e espírito.
- E Deus?
- Deus é o desejo que temos de o ser e não se alcança; quem sabe se mesmo Deus não é ateu! Não precisamos de Deus, nem para que nos ensine a verdade das coisas, nem a sua beleza, nem para que nos assegure a moralidade com penas e castigos, mas para que nos salve, para que não nos deixe morrer completamente. Ninguém conseguiu convencer-me racionalmente da existência de Deus, nem tão-pouco da sua não-existência; os raciocínios dos ateus parecem-me de uma superficialidade e futilidade ainda maiores do que os dos seus contraditores. Crer em Deus é, em primeira instância, querer que haja Deus, não poder viver sem Ele. Se creio em Deus, ou pelo menos quero crer nele, é, antes de mais, porque quero que Deus exista, e depois porque se me revela, por via cordial, no Evangelho e por meio de Cristo e da sua história. É coisa do coração.
- É só isso a fé?
-Crê-se contra a razão. A fé é criar Deus. Não passa pelos dogmas ou doutrina de nenhuma Igreja. A fé da infância, essa é irrecuperável. Vivi a fé à minha maneira, não a partir da certeza e da confiança, mas da incerteza e do paradoxo. Não será o querer crer um princípio de fé? O que deseja a fé e a pede não é o que já a tem, ainda que não o saiba?
- A fé é inseparável da dúvida?
- O modo de viver, de lutar, de lutar pela vida e de viver da luta, da fé, é duvidar. Fé que não duvida é uma fé morta. Quem não duvida não crê.
- Como atingir a imortalidade?
- Actua de tal forma que mereças a eternidade, que te tornes insubstituível, que não mereças morrer. Recordo mais uma vez Senacour e corrijo pela positiva a frase de Obermann: «O homem é perecível: pode ser, mas pereçamos resistindo, e se é o nada que nos está reservado, façamos que isso seja uma injustiça.»
- Quem são os que se salvam?
- Só se salvam aqueles que desejam salvar-se, só se eternizam aqueles que viveram atormentados por uma fome terrível de eternidade e de eternização. Todo aquele que aspira a não morrer jamais, e crê não morrer jamais em espírito, é porque o merece; ou melhor: só aspira à eternidade pessoal aquele que já a traz consigo. Só despreza a aspiração apaixonada à sua própria imortalidade, e isso com paixão capaz de afogar toda a razão, aquele que a não merece – e é porque a não merece que ele não a deseja. É pelo que quisemos ser, e não pelo que fomos, que nos salvamos ou perdemos.
- Nunca se sentiu atraído pelas religiões orientais?
- Sempre me pareceu inadmissível e vã qualquer ideia de Deus que não seja rigorosamente a do Deus uno, pessoal, imortalizador, pai dos homens, que os salva do nada, os ressuscita e os faz filhos seus em Cristo. O cristianismo é a única religião que nós, europeus do século XX, poderemos verdadeiramente sentir, é, como dizia Kierkegaard, uma saída desesperada, saída que exige o martírio da fé, que é a crucificação da razão, segundo esse trágico pensador. A fome de imortalidade e a agonia do cristianismo são dois aspectos da mesma imensa questão.
- Há em alguns dos seus escritos a ideia segundo a qual os pensadores cristãos devem afirmar a imortalidade pessoal…
- Os pensadores cristãos estão profundamente comprometidos com a doutrina da imortalidade pessoal, seja racional ou não. Têm de afirmar o que a sua razão pode negar; têm de lutar contra a razão ao mesmo tempo que não podem evitar abraçar-se a ela. Não podem empregar só e exclusivamente a razão para provar a imortalidade, mas podem fazer uso dela com o fim de fortalecer a esperança e a fé por meio da dúvida. É a lição de Pascal, de Kierkegaard, até talvez do Kant da «Crítica da Razão Prática».
- Acreditou na ressurreição da carne?
- Nunca esqueci as palavras de São Paulo na I Epístola aos Coríntios: «Se a nossa esperança em Cristo é somente para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens.» E sobretudo: «Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou, e se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa predicação, e vã é também a nossa fé.» A cristandade foi o culto de um Deus Homem, que nasce, padece, morre e ressuscita de entre os mortos para transmitir a sua agonia aos crentes. Logo que morreu Jesus e o Cristo renasceu nas almas dos crentes, para nelas agonizar, então nasceu a fé na ressurreição da carne e, com ela, a fé na imortalidade da alma. E desse grande dogma da ressurreição da carne nasceu a agonia de São Paulo.
- Porquê a «agonia» de São Paulo?
- A ressurreição da carne, esperança judaica, farisaica, psíquica – quase carnal – entrou em conflito com a imortalidade da alma, esperança helénica, platónica, pneumática ou espiritual. E esta é a tragédia, a agonia da São Paulo. E a do cristianismo. Porque a ressurreição da carne é algo de fisiológico, algo de completamente individual. Um solitário, um monge, um eremita, pode ressuscitar carnalmente e viver, se isso é viver, só com Deus. O cristianismo é o individualismo radical.
- É pessimista em relação ao futuro?
- Há momentos em que se nos afigura que a Europa, o mundo civilizado, está a passar por um outro milénio; que se aproxima o fim, o fim do mundo civilizado, da civilização, tal como os primitivos cristãos, os verdadeiros evangélicos, julgavam que se aproximava o fim do mundo. E há quem para consigo diga, com a trágica expressão portuguesa: «Isto dá vontade de morrer». Isto dá ganas de morrer. Cristo nosso, Cristo nosso! Porque nos abandonaste?
- Como se definiria politicamente?
- Talvez como alguém que adere de alma e coração ao que está escrito nos Actos dos Apóstolos: «E todos os que acreditavam estavam unidos, e tudo o que cada um tinha era possuído em comum por todos. Vendiam as suas fazendas e os seus bens e distribuíam-nos por todos, segundo a necessidade que cada um tinha. E nenhum dizia ser sua coisa alguma daquelas que possuía, mas tudo entre eles era em comum. E não havia nenhum necessitado entre eles, porque todos quantos eram possuidores de campos, ou de casas, vendendo isso, traziam o preço do que vendiam. E o punham aos pés dos apóstolos e era repartido, pois, por eles em particular, segundo as necessidades que cada um tinha.»
- Que desejaria ao homem do século XXI?
- Que sobreviva como é e como deseja ser, com o seu corpo, a sua casa, os seus amigos, as suas paisagens familiares, com todas as coisas que ama e odeia e com o seu próprio passado. Que Deus lhe dê, não a paz, mas a glória. A glória de crer e duvidar e voltar a crer sem descanso. A glória do desespero resignado e da resignação desesperada, da insatisfação esperançada e da esperança insatisfeita. E que grite, nunca pare de gritar aos Céus: «eu não quero morrer!».