António Rego Chaves
Poucos meses antes de morrer, W. G. Sebald (1944-2001) declarava ter tomado muito a sério certas críticas segundo as quais a estratégia narrativa e a elegância do estilo, na mais ambiciosa das suas obras, «Austerlitz», acabavam por anestesiar o horror dos campos nazis. E prosseguia: «Tenho dúvidas tenebrosas acerca do que faço, tanto de um ponto de vista moral como estético. Não creio que seja possível escrever hoje em dia um texto que seja de alguma forma carenciado de ideias, que apenas conte a história de personagens fortuitas. Em minha opinião, a boa prosa tem de procurar construir ideias e mundos, e também de tomar posição sobre o estado das coisas.»
«Guerra Aérea e Literatura» (1997) aborda um tema que era quase tabu na Alemanha – os bombardeamentos a que foi submetido o país na primeira metade dos anos 40 do século XX. Nada mais eloquente do que o início do livro, isento de retórica, sem uma palavra a mais: «É hoje difícil formar uma ideia sequer aproximada do volume da devastação que atingiu as cidades alemãs nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial e mais difícil ainda pensar o horror ligado a essa devastação. É certo que as 'Strategic Bombing Surveys' dos Aliados, os registos do Gabinete Federal de Estatística e outras fontes oficiais mostram que só a Royal Air Force lançou, em 400 mil voos, um milhão de toneladas de bombas sobre o território inimigo, que das 131 cidades atacadas, algumas uma só vez, outras repetidamente, muitas foram quase totalmente arrasadas, que 600 mil civis alemães caíram vítimas da guerra aérea, que três milhões e meio de habitações foram destruídas, que no fim da guerra havia sete milhões e meio de desalojados, que em Colónia resultaram 31,4 metros cúbicos de escombros por habitante, em Dresden 42,8 metros cúbicos, mas nós não sabemos o verdadeiro significado de tudo isso.»
Estes factos e números irrefutáveis são bem mais aterradores do que quaisquer exercícios de estilo, mesmo que geniais. A realidade é que as frases acima transcritas, inicialmente pronunciadas durante a primeira de uma série de conferências proferidas pelo autor na Universidade de Zurique, causaram embaraçados protestos da esquerda alemã e vivos aplausos da direita e da extrema-direita. Em rigor, não se justificavam tais reacções, tanto mais que W. G. Sebald nunca pretendeu atribuir ao povo alemão o papel de vítima, pois declarava: «A maioria dos alemães sabe hoje, pelo menos assim se espera, que fomos nós que provocámos a destruição das cidades onde vivíamos. Dificilmente alguém duvidará ainda de que o marechal da Força Aérea Göring teria erradicado Londres do mapa se lho tivessem permitido os seus recursos técnicos.»
O que estava em causa no texto era, pois, bem menos controverso do que transformar em vítimas os cúmplices civis activos ou passivos dos carrascos nazis. Tratava-se, apenas, de proclamar «urbi et orbi» que o ideal da verdade, em toda a extensão da sua despretensiosa objectividade, se revela, perante a destruição total, como «o único fundamento legítimo para prosseguir o trabalho literário». Mais ainda, que, «pelo contrário, a produção de efeitos estéticos ou pseudo-estéticos a partir das ruínas de um mundo aniquilado é um processo que retira à literatura a sua legitimidade.» A tese não agradaria a esforçados fazedores de frases imersos na desprezível tarefa de transformar os Auschwitz da história em delicadas rendas de bilros marcadas pela total ausência de ideias e confeccionadas para alcançar um êxito seguro entre a crítica bem-pensante – embora o conferencista apenas tivesse atacado o silêncio dos escritores alemães. Não pretendia, pois, censurar as traumatizadas testemunhas directas dos bombardeamentos, já mortas ou ainda vivas, por não terem falado, dado que «o direito de calar reivindicado pela maioria destas pessoas é tão inviolável como o dos sobreviventes de Hiroxima, dos quais Kenzaburo Oe diz, nas suas declarações de 1965 sobre esta cidade, que mesmo passados vinte anos sobre a explosão da bomba muitos ainda não conseguiam falar do que aconteceu naquele dia». O que estava em causa era «trazer para a consciência pública, sob a forma de exposição histórica ou literária, os horrores da guerra aérea». Foi esse indeclinável dever que os intelectuais alemães, com raras e honrosas excepções, recusaram com o seu bem explicável mas dificilmente justificável mutismo durante mais de meio século – e daí a corajosa denúncia de W. G. Sebald.
Completam a obra três breves ensaios consagrados a Alfred Andersch, Jean Améry e Peter Weiss. Em todos eles se volta a impor a inquestionável estatura moral de Sebald. No primeiro, pela aristocrática repugnância que evidencia perante um escrevinhador tão indigno de respeito humano que nos chegamos a interrogar sobre o impudor de reflectir publicamente acerca da sua vida e da sua obra. No segundo, pela sóbria mas solene evocação de um incómodo filósofo que, uma vez torturado pela Gestapo, internado em Auschwitz e Bergen-Belsen, destruído o seu lar, denunciará «a obscenidade de uma sociedade psicológica e socialmente deformada e a infâmia de supor que a história poderia depois prosseguir o seu curso sem problemas, como se nada tivesse acontecido», «trazendo para sempre a morte dentro de si» até optar pelo suicídio em Salzburgo. O último, pela justiça feita a um eminente dramaturgo, pintor e romancista que, nomeadamente em «A Estética da Resistência», corporiza «a luta contra ‘a arte de esquecer’ que faz tanto parte da vida como a melancolia e a morte».
Em toda esta implacável meditação está bem presente o selo de um grande humanista: se uma lição fulcral Sebald nos transmite é a de que a narrativa dos bombardeamentos de civis no século XX, seja ela resultante da memória individual ou colectiva, exige de quem a escreve uma exaustiva enumeração de todos os responsáveis morais – e não apenas dos autores materiais – da barbárie, de Guernica a Varsóvia, de Belgrado a Roterdão, de Colónia, Hamburgo e Dresden a Estalinegrado, Hiroxima e Nagasaqui.
W. G. Sebald, «História Natural da Destruição – Guerra Aérea e Literatura», Editorial Teorema, 2006, 171 páginas