António Rego Chaves
Lemos este livro de Miguel Urbano Rodrigues com alguma perplexidade, ao verificarmos que o jornalista de grande talento, brilhante inteligência e vasta cultura que o autor é experimenta sérias dificuldades em exercer o seu espírito crítico, sem dúvida muito apurado em relação aos países capitalistas, quando escreve sobre países do «socialismo real». Se a análise política nos parece útil, mesmo imprescindível, no primeiro caso, ela não o será menos no segundo. O que se nos afigura ilícito é que o comentarista, ainda que militante, utilize, primeiro, a arma da razão, escolhendo, depois, deixar-se conduzir pelo coração. A fria lâmina que disseca, implacável, o capitalismo, não pode, perante o socialismo, metamorfosear-se em piedosa felpa de veludo – a menos que queira inserir-se no terreno da propaganda.
Teve – e tem – uma vida cheia, Miguel Urbano Rodrigues. Percorreu meio mundo, sempre a escrever e a publicar, militou, como comunista, em Portugal e no Brasil, foi deputado, durante duas legislaturas, à Assembleia da República. Ali confirmou «que Marx tinha carradas de razão ao criticar o cretinismo parlamentar». Em 1996 instalou-se em Cuba, ciente de que «o rodízio PS-PSD podia introduzir mudanças no discurso, mas ambos agiam como executores da mesma política neoliberal imposta pelo imperialismo». Regressado a Portugal em 2004, encontra no lugar de primeiro-ministro «um político de opereta» (Santana Lopes) e o Presidente da República que o nomeou, Jorge Sampaio, faz-lhe «recordar Carmona pela indecisão». Refugia-se, então, em Serpa, no apartamento que na altura adquire, onde «dormia, lia e escrevia entre caixotes, roupas e montanhas de livros».
A obra que justifica o título começa, subitamente, muito perto do fim, ou seja, para sermos mais rigorosos, na página 189. O autor transfigura-se e «agarra-nos», ora surpresos, ora emocionados. Leiamo-lo: «Sentia-me bem. Envelhecia com serenidade em Serpa, uma cidade habitada pela minha gente alentejana, com um casco histórico belíssimo que nas noites de luar, deserta, conserva uma atmosfera quase medieval. Não me alarmei quando fui atingido por um mal que temia, mas esperava. O mecanismo da memória começou a falhar com muita frequência. De início notei pequenas falhas. Depois painéis inteiros foram contaminados. Pretendia recordar uma data, o nome de uma pessoa, um acontecimento. E não conseguia.»
Mas estamos, de facto, perante um homem de aço, da têmpera de um Álvaro Cunhal (que, aliás, Miguel Urbano Rodrigues considera um dos «dois maiores portugueses do século XX», sendo o outro Vasco Gonçalves): «Preocupado, reagi com um treino. Quase todas as noites, ao deitar-me, fixava um objectivo: recordar os nomes de um mínimo de cidades, rios, lagos e montanhas de alguns países, distribuindo a tarefa por continentes. Hoje, passados cinco anos, o declínio da memória acentuou-se, mas mantenho o ‘treino’, limitando-lhe a área. A meta, agora, é recordar pelo menos 120 cidades de seis países da América Latina: México, Cuba, Colômbia, Peru, Chile e Argentina, com um mínimo de 20 para cada um.» Note-se: esta é a voz de alguém que está hoje prestes a completar 84 anos – e que nunca parou de escrever. Alguém que decidiu retomar «a leitura de Aristóteles, Cervantes, Shakespeare, Dante, Fernão Lopes, Camões, Garcilaso de la Vega, a Bíblia, o Alcorão, As Mil e uma Noites, Júlio César, Rousseau, Marx, Lenine, Mariátegui, Bolívar, Malraux, Flaubert, Proust, Pushkin, Tolstoi, Huxley, Herculano, Eça de Queiroz, entre outros», ao mesmo tempo que relê «com vagar Kafka e sobretudo Virginia Woolf e James Joyce». Alguém que, aqui e ali, parece encontrar o tom do incessante monólogo interior do velho professor Isak Borg, a personagem central do admirável filme «Morangos Silvestres», de Ingmar Bergman.
Escutemos lentamente a corrente de consciência do autor, vibrante de autenticidade: «Não sofro de insónias. O adormecimento tarda, mas sinto prazer, num estado de bem-estar, em orientar o pensamento para temas escolhidos, que variam de noite para noite. Recordo momentos vividos, interpretando-os sob uma perspectiva distanciada da que na época fez deles tema retido pela memória. Não me apercebo da transição suave desses passeios mentais para o mundo da semi-consciência em que navego depois durante horas.» (…) «No campo sou mais eu; carrego a nostalgia da infância vivida nas margens do Ardila. Senti felicidade caminhando nos páramos andinos, em planuras geladas do Árctico, em desertos africanos, em selvas equatoriais. No Alentejo toco num sobreiro ou numa azinheira, atravesso em Maio uma seara de trigo ou sento-me num toco de oliveira vendo o gado pastar e a sensação de bem-estar que me invade faz-me esquecer a idade, funde-me com a terra e o sol que a ilumina.»
O amor, não só no passado, mas no presente, irrompe nesta obra. Melhor ainda, banha de magia as suas últimas páginas: «Ela tinha 38 anos e eu ia completar 80. Uma jovem como Ana Catarina não podia sentir-se atraída por um velho como eu. Tomar uma grande afinidade intelectual e humana por um sentimento diferente seria uma atitude reveladora de que eu entrava em fase senil sem me dar conta disso. Mas Ana Catarina começou a enviar-me mensagens diárias via Internet. Incluía nelas palavras russas. Quando as traduzia, a minha confiança interior aumentava. Eram palavras de amor. Passei a dormir menos. Sem insónias. Deitado, pensava nela durante horas. Um dia venci as muralhas da inibição e disse-lhe que a atracção complexa que exercia sobre mim era um sentimento muito próximo do amor, que me assustava. Mas ela não se assustou. Respondeu que eu a fazia feliz e sugeriu que levantasse as barreiras do amor.» (…) «Reencontrei pela sua mão a felicidade possível…» (…) «Caty somente se desentende comigo quando o diálogo incide sobre a brevidade dessa felicidade. Porque, na lógica da vida, ela continuará em breve sozinha o seu caminhar.»
Longa Vida, Miguel Urbano Rodrigues!
Miguel Urbano Rodrigues, «Meditação Descontínua sobre o Envelhecimento», Calendário, 2009, 223 páginas