António Rego Chaves
Não foi o único, mas poderá ter sido, no século XX, um dos raros «santos» cristãos. Nasceu em Agosto de 1912, morreu em Janeiro de 2007, com 94 anos, depois de ter garantido que sempre sentira «a impaciência da morte». Sabia do que falava, pois acreditava numa vida eterna. Mas, indignado, interpelava Deus: porquê tanto sofrimento, porquê o mundo, porquê a vida, porquê a existência humana? «A minha fé» – proclamou – «tornou-se cada vez mais numa interrogação». Numa visceral, veemente, revoltada interrogação. Eis o Abbé Pierre, para quem a finalidade da vida era aprender a amar os humanos e a Deus. Um padre que preferia a prática fraterna às subtilezas dos teólogos, as acções às palavras, a solidariedade às preces rituais.
Bateu-se, na Resistência, contra a ocupação da França pelos nazis; foi deputado à Assembleia Nacional, onde defendeu o direito de todos, incluindo os imigrantes, a uma habitação digna; lutou contra a proliferação dos «novos pobres». Denunciou, em 1954, a morte, em Paris, de velhos e crianças vitimados pelo frio, provocando aquilo a que chamou «a insurreição da bondade». Trinta anos passados, insurgia-se contra o escândalo dos excedentes agrícolas e criava o primeiro banco de alimentos no seu país. Batera-se, entretanto, por todos os meios ao seu alcance, chegando a pedir esmola nos grandes «boulevards» de Paris, pejados de abastados «católicos», contra a miséria em que vegetavam muitos dos seus concidadãos e dezenas de milhares de imigrantes em busca de trabalho e abrigo em França. Legou-nos esta máxima lapidar: «A luta pelo meu pão pode ser materialismo; mas a luta pelo pão dos outros já é espiritualismo». Não foi o dinheiro que o fez correr até à exaustão, mas o Amor. Atribuiu-se o dever de ser – e foi mesmo – corajosa «voz dos homens sem voz». Disse-lhe, um dia, o futuro João XXIII: «Sois o meu carvão ardente». Não se enganaria: este incómodo «santo» jamais se resignaria, seja com a pobreza dos pobres, seja com os luxos do Vaticano.
Frédéric Lenoir, a quem se deve em grande parte a publicação deste «testamento intelectual e espiritual» do fundador das célebres comunidades Emaús, afirma que, para o Abbé Pierre, «o essencial da religião cristã consistia em ajudar o próximo e em transformar em actos a palavra do Cristo, ‘amai-vos uns aos outros como eu vos amei’.» Neste contexto, sublinha que o sacerdote sempre foi fiel ao insólito conselho que lhe dera o grande teólogo jesuíta Henri de Lubac na véspera da sua ordenação: «Pedi a Deus que vos dê o anticlericalismo dos santos.» Talvez por este motivo tenha dado um decisivo passo em frente, durante os últimos 50 anos da sua longa vida, para realizar o incrível «milagre» de «reconciliar a França católica e a França republicana.»
Debruçando-se sobre o amor e a felicidade, as concepções budista e cristã do sofrimento, o desejo sexual e a castidade, o celibato e o casamento dos padres, os pontificados de João Paulo II e de Bento XVI, o casamento dos homossexuais e a homoparentalidade, a ordenação das mulheres, a relação de Jesus com Maria Madalena, a «idolatria» de que por vezes tem sido objecto a «mãe de Deus», o pecado original, o pensamento de Teilhard de Chardin, a eucaristia, o regresso ao cristianismo dos primeiros séculos, os Evangelhos, a liberdade, o pecado, o inferno, a revelação histórica e a revelação invisível ou o fanatismo religioso, o Abbé Pierre encontra sempre uma palavra pessoal – e também, decerto, longamente meditada – a transmitir-nos. Para que a acolhamos sem reservas e nos tornemos fanáticos? Longe disso, para que nos interroguemos acerca do sentido e alcance das perspectivas que nos sugere, aceitando-os ou contestando-os e, caso possuamos esse dom, para que encontremos as novas interrogações que eles nos possam suscitar, sem a mínima preocupação acerca da sua ortodoxia. Não será precisamente a isso que chamamos pensar em liberdade?
Estas «pequenas meditações sobre a fé cristã e o sentido da vida» surpreendem-nos, por vezes, com afirmações como a seguinte, ao abordar os dogmas da Imaculada Conceição (datado de 1854) e da Assunção de Maria (proclamado em 1950): «Os primeiros cristãos lutaram com todas as suas forças contra o paganismo e a idolatria, para afirmarem que, seguindo Jesus, só se adora Deus. A adoração só é possível e verdadeira se se dirigir ao infinito. Atribui-la à Virgem ou aos santos não é digno de um cristão.» (…) «Não posso conceber que se dedique a Maria um verdadeiro culto que, na vida de alguns, acaba por tomar o lugar da adoração que só devemos ao Criador. Então, isso transforma-se em idolatria. Desse modo, Maria não iria tomar precisamente o lugar das deusas da Antiguidade contra as quais o cristianismo primitivo lutou para trazer ao mundo inteiro a Revelação do Deus Uno e Invisível, o único a quem é legítimo prestar um culto?» Vindas de quem vêm – um eminente sacerdote católico – tais asserções tudo poderão ser consideradas, menos despiciendas.
Dignas de muito interesse são também as seguintes reflexões sobre o poder temporal e o poder espiritual: «O papado continua muito poderoso e ainda reflecte o rosto do papa/imperador. O papa, por exemplo, é eleito vitaliciamente, como era o imperador. Não se trata de suprimir o papado, mas de voltar a uma função mais modesta. É necessário livrar a Igreja da tutela romana sobre todas as Igrejas locais, do seu centralismo político e jurídico. É uma das condições para que a Igreja volte a ser plenamente evangélica e aconteça a reconciliação de todos os cristãos na unidade.»
Rematemos com mais uma corajosa «provocação» do nosso «santo» à hierarquia, que, tal como as acima transcritas, estará bem longe de obter a aprovação do Papa Ratzinger e da «sua» obediente Congregação para a Doutrina da Fé: «A fórmula ‘fora da Igreja não há salvação’, que era muito aceite na minha infância, sempre me chocou profundamente. Como seria possível que Deus Amor somente se revelasse e apenas salvasse uma pequeníssima porção da Humanidade, a dos baptizados? É tão absurdo!»
Abbé Pierre, «Porquê, meu Deus?», Dom Quixote, 2007, 109 páginas