António Rego Chaves
É com alguma dificuldade que certas sumidades ibéricas têm dado o seu aval à entrada da espanhola María Zambrano (1904-1991) na coutada das filosofias «racionalmente correctas» de pendor universitário. A grande pensadora encontra-se, no entanto, bem acompanhada na qualidade de alvo previsível dos zelosos e burocráticos guardas fronteiriços do espírito que, ainda hoje, não conseguem ver com bons olhos a presença no «campus» de um Montaigne, um Pascal, um Nietzsche ou um Unamuno.
Já tivemos ocasião, aqui, de apresentar um livro de María Zambrano, «Filosofia e Poesia». Aquele cuja leitura sugerimos hoje intitula-se «A Confissão: Género Literário» e chama a nossa atenção sobretudo para autores como Santo Agostinho, Rousseau ou Rimbaud, sustentando que «o drama da cultura moderna foi a falta inicial de contacto entre a verdade da razão e a vida».
Santo Agostinho inaugura o «estranho género literário chamado Confissão», mas é possível descobrir-lhe um predecessor bem conhecido de todos os frequentadores do Antigo Testamento – Job. Um Job que, por nos falar na primeira pessoa, arrancando a sua voz às profundezas de uma intolerável solidão, se entrega, por inteiro, ao nosso olhar. «A Confissão é a linguagem de alguém que não apagou a sua condição de sujeito, é a linguagem do sujeito enquanto tal.» (…) «É um acto em que o sujeito se revela a si próprio», «a máxima acção que nos é dado executar com a palavra».
Curioso é verificar que «os géneros literários parecem crescer à medida que a Filosofia se afasta da vida». Mas a razão não pode – ou não deve – nem abandonar, nem, muito menos, asfixiar a existência. O desespero conduz Job à sua queixa, ao seu dorido lamento perante o horror de ter nascido, o espanto de ir morrer, a estranheza de se confrontar com a injustiça entre os homens – enfim, revela-lhe em toda a sua extensão a angústia de estar no mundo. O que Job no mais íntimo de si deseja é que Deus se ocupe, como bom Pai, da sua pessoa.
Para Santo Agostinho, outro grande solitário, a questão será diferente: para além da Literatura, da Filosofia, da Religião, o bispo de Hipona pergunta em primeiro lugar por si próprio e, ao interrogar-se em público, expõe-se não só ao omnisciente olhar divino como à indiscreta curiosidade do género humano. Não lhe interessa o Deus racional dos filósofos e dos sábios, o seu coração não se conforma com menos do que a vida eterna, «vida em que nada se perde, nem a nada se renuncia». Sintetiza María Zambrano: «Santo Agostinho desvaneceu o terror do homem antigo, desamparado e desfraternizado. Desfez o pesadelo da existência, pois alegra-se por ter sido gerado.» (…) «Não teme a morte.» (…) «E encontrou os seus irmãos… A vida tornou-se possível.»
A filósofa recorda o mais ilustre dos seus mestres, Ortega y Gasset: «Não vivemos de ideias, mas de crenças». Comenta, evocando as certezas avidamente procuradas por Descartes no «Discurso do Método»: «A evidência parece ser a verdade em forma assimilável pela vida; algo que participa das crenças e das ideias. Como a crença, oferece-nos segurança e, como a ideia, é transparente para a mente.» Em termos filosóficos, o que está em causa é, afinal, há séculos e séculos, um confronto exemplarmente explicitado pela crispação de Kierkegaard perante o imponente sistema de Hegel: o coração contesta com toda a sua radical especificidade a identidade do pretenso espírito absoluto. Recorda-se Paul Éluard: «Se Lautréamont, Baudelaire e Rimbaud pareciam cheios de inquietações, foi porque a sua solidão era ilimitada. Eles sonham com filhos, com irmãos, e chegam a julgar-se mortos entre os mortos.» Esclarece María Zambrano: «São mortos vivos, enterrados numa sepultura que, invisível, os afasta dos viventes.» Daí que as suas palavras – que, em boa verdade, são altivas Confissões – nos soem como «gritos lançados do fundo dos infernos». Que sejam escutados. A razão filosófica do século XXI não poderá alhear-se de tão genuínas manifestações de revolta metafísica – a menos que queira renunciar de vez a ocupar-se da trágica existência dos humanos.
María Zambrano, «La Confesión: Género Literario», Ediciones Siruela, 2004, 108 páginas