António Rego Chaves
Ensinava-nos nos anos 1960 um professor da Faculdade de Letras de Lisboa: «Thomas Mann – num ‘livro formalmente brilhante, ousado e obscuro’ – expõe o seu programa de cultura contra a civilização por antinomias.» Enumerava-as: «A cultura é germânica, a civilização é latina.» (…) «A cultura é pessimista, a civilização é optimista.» (…) «A cultura é protestante, a civilização é católica. A cultura é o eterno protesto da Alemanha contra os herdeiros de Roma – os germanos contra os césares herdeiros da república romana, Lutero contra o Papa, ‘herdeiro do imperialismo romano’, os alemães contra Napoleão e os alemães contra os latinos, na guerra de 1914.» (…) «A cultura é elitista, a civilização é niveladora.» (…) «A cultura é música, a arte que eleva as almas para Deus, a civilização é eloquência, a arte da palavra.» Seria esta uma boa síntese do pensamento de Thomas Mann em Dezembro de 1917, data em que se iniciavam as negociações de armistício entre a Alemanha e Rússia, e quando o escritor ainda pensava que o seu país derrotaria os ocidentais da «Entente Cordiale», ou seja, da «civilização», da «literatura», da «política» e da «retórica»? Talvez, mas haveria outras visões tão válidas quanto esta.
Adiante e começando por sublinhar que as «Considerações de um Apolítico» nunca foram editadas no nosso país: quando as redigiu, Thomas Mann já tinha publicado «Os Buddenbrook», «Tonio Kröger» ou «Morte em Veneza» e interrompera a redacção de «A Montanha Mágica» para «lutar», mas bem sentado, na Grande Guerra. Sobrou-lhe em provocações o que lhe faltou em coragem física. No pior sentido, quis passar por um apolítico. Vale dizer: escolheu não existir na qualidade de cidadão de corpo inteiro.
Só que é decerto muito mais fácil provar a existência de Deus do que a de um apolítico. Sabe-se que dizermo-nos «apolíticos» é, desde sempre, apenas uma forma de sermos conservadores sem como tal nos assumirmos. Antecipando: o «patriota» Thomas Mann, que em 1914-1918 se perfila como frontal opositor do Iluminismo, da Revolução Francesa, da democracia e da regra «um homem, um voto», acabará curvado perante o parlamentarismo à maneira de Churchill, sistema de que, aliás, Hitler se serviria, em 33, para tomar o Poder. Tão radical «viragem de casaca» teve razões que a razão conhece.
Na sua tão brilhante quanto cautelosa introdução francesa a esta obra encharcada de desprezo pela França, cuja leitura integral é hoje um instrutivo suplício, lembrava Jacques Brenner, em 1975, que, para o Thomas Mann de 1918, o sufrágio universal não passava de uma brincadeira de mau gosto, «se a voz do mais eminente dos sábios não vale mais do que a de um simples analfabeto». Não nos escandalizemos: mesmo alguns anafados intelectuais do nosso tempo pensam que a sua vontade devia valer mais do que a expressa nas urnas pelos esfomeados – à falta de serem informados, se possível por duro saber de experiência feito, de que a fome não é de todo uma doença hereditária…
Assumido burguês, Thomas Mann «excomunga» Rousseau, Voltaire e Robespierre, ao passo que instala no seu altar os bustos de Goethe, Schopenhauer e Nietzsche. Só em 1922 aceitará a democracia – «coisa» que tanto execrara e tomara como uma espécie de epidemia que se alastrara a países tão «atrasados» como o Paraguai…e Portugal. Tarde de mais. Ao contrário do que chegaria a desejar, nunca um Marx estendeu a mão a um Hölderlin. Mas aderirá à República de Weimar, horrorizar-se-á com Hitler, abandonará o seu país, ser-lhe-á retirada a nacionalidade alemã, verá os bens confiscados e os livros queimados pelos nazis. Quando morreu, em 1955, tornara-se num «orador ambulante» do «flagelo democrático» que denunciara nas «Considerações de um Apolítico».
Evidenciam-se neste panfleto o orgulhoso nacionalismo, o arrogante chauvinismo e a dogmática afirmação da superioridade alemã que tornam por vezes insuportável a sua leitura. «Decreta»: «A diferença entre o espírito e a política engloba a da cultura e da civilização, da alma e da sociedade, da liberdade e do direito de voto, da arte e da literatura; e o espírito germânico é a cultura, a alma, a liberdade, a arte e não a civilização, a sociedade, o direito de voto, a literatura.» Mas há também momentos fulgurantes, como aqueles que Thomas Mann consagra a Dostoievski, Turgueniev, Lutero, Goethe, Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Wagner e Bismarck, a par de outros, nada lisonjeiros para o seu responsável, em que Rousseau, Voltaire, Zola ou Romain Rolland são objecto do escárnio do escritor que, qual intransigente militarista prussiano, não se inibe de dar a sua «bênção» à invasão da Bélgica e ao afundamento do Lusitania.
Quase a terminar o texto, o autor parece ter consciência de que ele é globalmente negativo e que em quase nada o engrandecerá. Escreve: «Algumas destas páginas são belas – aquelas onde o amor pôde exprimir-se. Para outras, onde dominam a discussão e a discórdia amarga, nunca mais lançarei um único olhar.» De facto, a inegável grandeza de certas passagens contrasta com a mesquinhez evidenciada noutras, manchadas pelas cegueiras anglófoba e francófoba – e pela brutal apologia do imperialismo germânico.
Atente-se nestas «pérolas» do futuro Nobel, algumas delas dignas do super-racista H. S. Chamberlain e publicadas poucos anos antes da ascensão de Hitler: «Lembramo-nos de que Nietzsche acusou a profunda mediocridade dos ingleses de ter provocado uma depressão colectiva do espírito europeu e isso na época em que eles tinham introduzido ‘as ideias modernas’, ‘as ideias do século XVIII’, no mundo, ideias que os franceses macaquearam (…) e das quais foram as primeiras grandes vítimas.» (…) «Uma educação como a que a Alemanha conheceu, integrando elementos judeus no seu corpo popular, não tem precedentes.» (!!!) «O orgulho, a honra e o prazer de obedecer parecem hoje uma especificidade alemã incompreensível no plano internacional.» (…) «Recusa da arte plástica dos canibais e das danças sul-americanas», «sede de gozo negróide», «D’Annunzio, o macaco de Wagner», etc. Que grotescos esgares de ódio!
Thomas Mann, «Considérations d’un apolitique», Grasset, 1975, 491 páginas