Magalhães Godinho («Portugal, a Emergência de uma Nação»)

Da Revolução de 1383 a Alcáçovas

António Rego Chaves

No longínquo ano de 1962, um jovem assistente de Faculdade Letras da Universidade de Lisboa, Joaquim Veríssimo Serrão, porventura desafiando o «seu» catedrático da cadeira de História da Expansão Portuguesa, Manuel Heleno, reincidente defensor da tese favorável às causas religiosas dos Descobrimentos, recomendou aos alunos um excelente «livrinho» acabado de sair. Tratava-se de «A Economia dos Descobrimentos Henriquinos», da autoria de Vitorino Magalhães Godinho. Conservo essa preciosa obra, barbaramente sublinhada – e considero que ela me ensinou algo de fundamental, não apenas acerca da Regência do Infante D. Pedro e de Alfarrobeira, como, até, no que se refere ao alcance da Revolução de 1383.

A minha gratidão dirijo-a, pois, tanto a Veríssimo Serrão como a Magalhães Godinho, este já então investigador com créditos firmados, muito próximo de Lucien Febvre e Fernand Braudel. O que aprendi com «A Economia dos Descobrimentos Henriquinos» só viria a ser confirmado, no essencial, pelo que li de António Sérgio, Joel Serrão, Borges Coelho e Oliveira Marques, todos eles representantes de correntes historiográficas inconciliáveis com certas opções reaccionárias pretensamente anglo-saxónicas que hoje dominam as nossas «mercadorias» editoriais.

Vitorino Magalhães Godinho é bem incisivo neste ensaio consagrado à emergência da nação portuguesa, «das raízes a 1480»: «A história voltou em muitos casos a concepções metodológicas e teóricas obsoletas, fragmentou-se, e viu-se limitada pela difusão de biografias de entretenimento e de ficção ‘histórica’. O desinteresse pelo estudo científico do passado (presente incluído) acompanhou a renúncia a planear o futuro: a acção política contraiu-se ao que se convencionou chamar ‘pragmatismo’, repeliu as ideologias para se confinar à ideologia única (sem ideais e pretendendo definir-se como ‘liberalismo’, infelizmente mal entendido, à revelia do grande sopro inovador de Oitocentos).» Acrescenta: «Não nos convence a posição, hoje tão difundida, que corta a realidade global em realidades quase estanques e pretende explicar o político sem o entretecer com o económico-social, as mentalidades e as culturas, a dialéctica do individual e do colectivo – a história em sentido pleno, afinal.»

Detenhamo-nos no que o autor explica e justifica serem «dois momentos cruciais» da História de Portugal durante a Idade Média: a Revolução de 1383 e a Regência do «moderno» Infante D. Pedro (à qual a Batalha de Alfarrobeira poria termo) durante a menoridade do «medieval» Afonso V.

Quanto à primeira, pergunta-se, ainda hoje, mas nem sempre de boa-fé, com aparentes razões ou até sem elas: «Revolução ou crise prolongada? Luta da burguesia contra a nobreza para se alcandorar ao poder, ou guerra onde se afirma a consciência nacional contra a dependência de Castela? A estratificação traduz-se nas opções políticas ou estas dividem a sociedade por traços verticais? Ruptura com o passado, ou fecho de abóbada de uma construção de dois séculos e meio?» A resposta esboça-a o autor com clareza: «Trata-se de uma séria manobra política urdida por Álvaro Pais [abastado burguês lisboeta, antigo alto magistrado de D. Pedro e D. Fernando, padrasto de João das Regras], que põe em acção todo o povo de Lisboa. Os mesteres antes de mais, a arraia-miúda; mas que além de ser apoiada por sectores dos cavaleiros e escudeiros, alicia ou força mercadores e gente mais afazendada, alguns nobres segundos e clérigos. Entra-se em revolução, que vai propagar-se. Os concelhos alçam-se contra os castelos – no Sul e Centro – onde predomina a cavalaria vilã (seguindo os forais de Lisboa e Santarém). Quer dizer que é um movimento de gente das vilas, baixa e meã – a gente comum, ou seja, organizada colectivamente»…

O parentesco entre a Revolução de 1383 e a Regência do Infante D. Pedro afigura-se evidente: «A Regência de D. Pedro foi um movimento urbano, como a Revolução de 1383-85, de que é a continuação, pois enquanto esta se dirigira contra a antiga nobreza, aquela cerceava o desenvolvimento da nova nobreza. Alfarrobeira é a reacção dos nobres, que dominam a vida pública durante o reinado de D. Afonso V. Na Regência as navegações constituíram a preocupação suprema, e a expansão em Marrocos foi postergada; no reinado que se lhe segue, a conquista marroquina constitui a preocupação suprema, e a exploração marítima é relegada para a iniciativa privada» – escrevera Magalhães Godinho em 1962. Mas, agora, trata-se sobretudo de focar o significado, para Portugal, da paz firmada entre D. Afonso V e os Reis Católicos, que pôs fim à guerra da sucessão de Castela:

«O Tratado de Alcáçovas de 1479 vem esclarecer as causas e motivações que desencadearam a guerra de sucessão e marcaram o seu desenrolar. Momento culminante na configuração da Península, e nas opções que se põem aos seus povos e construções político-sociais. Define Portugal, e traduz a aceitação dessa definição pelas outras entidades soberanas na Península: o Reino, de fronteiras traçadas pelos antigos tratados e não modificadas, agora integrando os arquipélagos adjacentes da Madeira – Porto Santo e dos Açores; a ocupação e prosseguimento da conquista de praças-fortes e territórios em Marrocos; a posse dos tratos e resgates e minas de ouro, a ocupação de costas e ilhas na Guiné, dos cabos Não e Bojador para sul, incluindo as ilhas cabo-verdianas e tudo quanto se vier a descobrir (acrescentem-se os mares adjacentes).»

Conclui o autor: «Portugal já emergiu então como nação, uma das raras nações. Mas, na sua multi-variada identidade, está lançado para ir mais além – dividiu a Península, trata-se de dividir o universo oceânico.» Seguiu-se, como se sabe, poucos anos passados, em 1494, o Tratado de Tordesilhas, ou seja, uma segunda vida para as navegações portuguesas.

Vitorino Magalhães Godinho, «Portugal: a Emergência de uma Nação», Edições Colibri, tiragem de 2009, 124 páginas