À beira da incomunicabilidade
António Rego Chaves
Na sua biografia de Nietzsche (1844-1900), escreveu Stefan Zweig que o autor de «Assim Falava Zaratustra» «consegue farejar com absoluta certeza tudo o que possa estar adulterado, tudo o que cheire a moralismo balofo, a incenso eclesiástico, a mentira estética, a fraseologia patriótica ou a qualquer outro narcótico da consciência». Se alguma dúvida restasse sobre a justeza desta asserção ao leitor das 125 cartas editadas há mais de 60 anos em Portugal, hoje à venda apenas em alfarrabistas, ela desvanecer-se-ia ao analisar os textos dirigidos pelo poeta-filósofo a familiares e amigos. Na verdade, o que perdura é a imagem de alguém em guerra permanente com o século, condenado a uma infinita solidão, à beira da absoluta incomunicabilidade.
Muito jovem, já escrevia à irmã: «Procuramos tranquilidade, paz e ventura? Não, procuramos apenas a verdade, ainda que ela seja horrível e repelente.» (…) «Queres paz espiritual e felicidade? Crê! Queres ser um apóstolo da verdade? Investiga!» Lazeres de então? Schopenhauer, Schumann, longos passeios solitários que lhe permitem repousar da nobre tarefa a que consagrará toda a sua vida: meditar sobre o passado, o presente e o futuro da Humanidade. Sente-se só, pressente que nunca deixará de o estar, «a despeito dos numerosos conhecimentos». Professor catedrático desde os 24 anos, manterá relações com intelectuais mais velhos como o filólogo Friedrich Ritschl ou o historiador Jakob Burckhardt; ou com os seus companheiros de geração Paul Deussen, conhecido pelas traduções e comentários de textos sagrados do hinduísmo; Erwin Rohde, responsável por uma famosa obra de referência para os helenistas, «Psyche»; Franz Overbeck, erudito professor de História da Igreja e radical adversário da teologia protestante; Peter Gast, músico; Henrich von Stein, filósofo; Karl Fuchs, pianista e crítico musical. Mas, com quase todos eles, os contactos serão por via de regra apenas de carácter epistolar, apesar de – ou porque – bem consciente de que um verdadeiro amigo é de facto um «milagre incompreensivelmente elevado».
«Vivo amarfanhado, na cinzenta nuvem da solidão. Não encontro por aqui homens que estejam em harmonia comigo e cujas falas sirvam de belo acompanhamento às minhas. Até os melhores, que têm, segundo observei, o cordial desejo de ser, para mim, alguma coisa mais do que conhecidos, permanecem, não sei porquê, muito longe dos meus sentimentos.» Estas palavras doloridas, dirigidas a Erwin Rohde em 1869, são glosadas por toda a correspondência do grande solitário. Não lhe bastava, de início, encontrar afinidades com schopenhauerianos e wagnerianos; sonhava fundar «uma nova Academia grega», «alcançar uma ilha» onde não tivesse de «tapar os ouvidos com algodão», vivendo e trabalhando juntamente com aqueles de quem se sentia próximo. Uma permanente «insónia espiritual» levá-lo-á, depois, a considerar a sua posição universitária como qualquer coisa de secundário, pois pretende expor um pensamento que, segundo crê, «abrirá caminho, pausada e silenciosamente, através dos séculos». Desde a publicação da sua primeira grande obra, «A Origem da Tragédia», que o tornou no «filósofo mais escandaloso da actualidade», sabe bem que o seu autêntico caminho, «solitário como o do rinoceronte», apenas começou – e anseia por «prosseguir na própria obra, pensando o menos possível em si mesmo».
Afastar-se-á em 1878 de Richard Wagner, quando este lhe envia o «Parsifal», por considerar que «toda a obra está cheia do espírito da Contra-Reforma», e nela há muito mais de Liszt do que de Wagner». O compositor paga-lhe o mimo com juros de mora, quando Nietzsche publica «Humano, Demasiado Humano»: «Em Bayreuth exerceu-se a censura sobre o meu livro, e parece que também se trata de deixar cair a grande excomunhão sobre o seu autor. Wagner perdeu uma grande ocasião de mostrar a sua magnanimidade» – comenta para Peter Gast. Emancipa-se então do «grande educador» que venerara e de quem agora se sente separado pelo abismo cultural existente entre o «paganismo» de «Siegfried» e o cristianismo, mergulha fundo na incomunicabilidade, opta pela «abstenção absoluta de trato com os homens». «A meio caminho da vida» (Dante) sente-se já «rodeado pela morte» (Lutero), mas encontra forças para conceber «Aurora», que considera «um dos livros mais valentes, mais elevados e mais judiciosos que nasceram de um cérebro e de um coração humanos». «Descobre» então Espinosa, em quem vê um «percursor» da sua negação do livre arbítrio, da finalidade, da ordem moral do universo, do altruísmo e do mal. Em 1882, ainda mal recomposto da perda da amizade com Wagner mas publicada «A Gaia Ciência», procurará o suicídio, dilacerado pelo grotesco incidente – ou acidente – da sua relação com Lou Salomé, jovem e inteligente «mentirosa». Mas, em 1883 e 1884, o canto inspirado de Zaratustra, qual «alquimista transformando a lama em ouro», podia já ser escutado, embora muito poucos ousassem ouvi-lo. Dirá do livro que acima de todos amou: «Nele estão todas as minhas meditações, sofrimentos e esperanças, e de tal maneira expressados que constitui uma completa justificação da minha vida.» (…) «Não me assusta pensar que a minha vida há-de ser sempre mais dura do que a de qualquer outro homem, pois debaixo do enorme peso de uma existência penosa adquiro a ‘boa consciência’ de possuir algo que famosos homens têm ou tiveram: ASAS!»
Até, em 1889, abraçar com ternura, na cidade de Turim, lavado em lágrimas, um cavalo espancado pelo dono, não cessa de criar, mas sempre incapaz de se adaptar a uma sociedade alemã marcada pelo «materialismo de cervejaria» que nada tem para lhe oferecer senão um desdenhoso silêncio e se manifesta incapaz de compreender a sua mundividência. Quando morre, louco há onze anos, respeitosos académicos alemães já consideram geniais os livros que publicara. Mas era tarde, tarde de mais, para a águia cujas asas haviam sido decepadas por um decrépito rebanho de filisteus.
Frederico Nietzsche, «Despojos de uma Tragédia – Cartas Inéditas», Editora Educação Nacional, 1944, 387 páginas