Regressando a Kant
António Rego Chaves
Mais de dois séculos depois da sua morte, fará sentido regressar a Kant? A esta pergunta, para inconfessadas conveniências um tanto deslocada, decerto que o John Rawls da equidade, da «Teoria da Justiça», que tanto lhe ficou a dever, responderia pela positiva. Com toda a razão. O mestre de Königsberg continua vivo – e bem vivo – entre nós. Só que muitos, por táctica ou estratégia, gostariam de vê-lo sepultado – pior ainda, ignorado.
Sabia de onde vinha e para onde ia: vir, vinha de Königsberg, ir, ia para Königsberg. Não tinha ambições pessoais, além de não desistir de pensar, com o maior rigor, em liberdade. Nesse sentido, talvez como nenhum dos seus contemporâneos, «fez pela vida». E lá nos foi construindo a «Crítica da Razão Pura», a «Crítica da Razão Prática», a «Crítica da Faculdade de Julgar». «Coisas» que ficaram, «coisas» que ficam, «coisas» que vão ficar.
Michel Foucault, exegeta de múltiplos talentos, consagrou-lhe uma tese universitária, traduziu-o, glosou-o. Mas não disse tudo sobre ele, nem podia dizer: Kant sempre foi inesgotável. Inesgotável à escala de Königsberg, inesgotável à escala da Europa, inesgotável à escala do vasto mundo. Escreveu assim o filósofo das Luzes: «Uma grande cidade, no centro de um Estado que reúne as assembleias do governo, uma Universidade (para a cultura das ciências) e uma situação favorável ao tráfego marítimo permitindo um comércio por via fluvial entre o interior da região e territórios limítrofes ou afastados, com costumes e línguas diferentes, tal é, a exemplo de Königsberg, nas margens do Pregel, a cidade que se pode considerar adaptada ao desenvolvimento do conhecimento dos homens e do mundo, e onde, sem viajar, esse conhecimento pode ser adquirido.»
Cidadão do mundo, não viajou nem precisava de viajar: viu, ouviu, leu (leu muito, narrativas de viagem, biografias, teatro, romances, filósofos, poetas, historiadores, leu muito de tudo, leu tudo) e meditou, gerando a sua famosa «revolução coperniciana». Tivesse ele ido pela Alemanha fora, a Paris, a Londres, nada teríamos lucrado com isso: de perto, encomendou Leibniz e Wolff; de Paris, Rousseau; de Londres, Hume. Acordado do longo «sono dogmático» pelo escocês, estava preparado para evitar todas as teodiceias.
Não ficou com grande opinião sobre o que viu em Königsberg, a saber, homens e mulheres: talvez fosse um tanto misógino, mas não era, decerto, um misantropo. Achava deprimente almoçar sozinho e por isso convidava sempre alguém para a sua mesa. Deixou escrito: «A forma de bem-estar que melhor se adequa à humanidade é uma boa refeição em boa companhia (e, tanto quanto possível, variada); Chesterfield dizia que ela não devia ser inferior ao número das Graças [três] e não exceder o das Musas [nove].»
Quanto aos tais homens e mulheres de que teve conhecimento «ao vivo» (sobretudo quanto aos homens e mulheres de que não teve conhecimento «ao vivo», a esmagadora maioria dos seus contemporâneos): se não fazia boa opinião acerca deles, a verdade é que, pelo que observou e leu, pôde lidar com o que hoje se chamaria uma «amostra representativa» de animais racionais. O resultado não foi lisonjeiro. Dir-se-ia que tudo começa mal para nós, logo desde os primeiros momentos fora do ventre materno, pressagiando o pior dos futuros: «O grito da criança que acaba de nascer não tem o tom da queixa, mas da indignação e da cólera que explode; não é que se sinta mal, mas está contrariada; provavelmente porque quer mover-se e experimenta a sua impotência como um entrave que lhe retira a liberdade.» (…) «Nenhum animal além do homem, tal como ele é agora, anuncia assim a sua existência no momento em que nasce; e a sabedoria da natureza parece tê-lo querido assim para a manutenção da espécie.»
Tinha-nos por egoístas pelo entendimento, pelo gosto e pelo interesse prático, naturalmente invejosos, sedentos de quezílias e de guerras. Mas, debatendo-nos entre a liberdade e a lei, pensava que sabemos alimentar não só a Anarquia (lei e liberdade sem poder), o Despotismo (lei e poder sem liberdade) e a Barbárie (poder sem liberdade nem lei), como a República (poder com liberdade e lei). A conciliação entre interesses individuais e bem comum, uma chave de todas as grandes questões sociais e políticas, manifestou-se desde sempre utópica, mas Kant acreditava que o homem se pode aperfeiçoar a si próprio, por meio das artes e das ciências, cultivando-se, civilizando-se e moralizando-se. Contrariaria assim, a pequenos passos mas com relativo êxito, o que chamou a «grosseria» da natureza humana.
Ao contrário de Rousseau, o filósofo desta «Antropologia do Ponto de Vista Pragmático» não acreditava, pois, na bondade natural do homem; muito pelo contrário, considerava que existe uma «má inclinação inata» da nossa espécie, que poderia ser combatida pela razão, sendo «quando muito travada, mas nunca extirpada». E esclarecia: «Mesmo numa república, que representa o mais alto desenvolvimento das boas disposições da espécie humana para o fim último do seu destino, a animalidade é, nas suas manifestações, anterior à pura humanidade e no fundo mais poderosa do que ela; é apenas devido ao seu enfraquecimento que o animal doméstico é mais útil ao homem do que a fera selvagem. A vontade individual está sempre pronta a declarar-se hostil aos vizinhos; esforça-se sempre, na sua pretensão de liberdade incondicional, por ser, não apenas independente, mas dominadora em relação aos seres que lhe são iguais por natureza.»
O pessimismo de Kant era, porém, matizado pelo seu voluntarismo, que o dispunha para uma tímida esperança de progresso moral: «Pode dizer-se que o primeiro traço de carácter da raça humana é o poder do homem, enquanto ser governado pela razão, de se criar um carácter em geral para a sua pessoa e para a sociedade na qual a natureza o coloca; o que supõe nele uma disposição favorável da natureza e uma inclinação para o bem…»
Kant, «Anthropologie du point de vue pragmatique», précédé de Michel Foucault, «Introduction à l’ ‘Anthropologie’», Vrin, 2009, 269 páginas