A humilde verdade dos factos
António Rego Chaves
Dizia Robert Musil (o autor do muito falado mas certamente pouco lido romance/ensaio «O Homem sem Qualidades», uma «Divina Comédia» do século XX) que «há duas coisas contra as quais não se pode lutar, que são Karl Kraus e a psicanálise». Teria fortes razões, umas demasiado pessoais, outras estritamente intelectuais, para um tal desabafo, quer em relação ao escritor de «Os Últimos Dias da Humanidade», quer no que dizia respeito a Sigmund Freud. Verdade seja que não era possível falar de cultura na Viena dos primeiros decénios novecentistas sem referir a omnipresente revista de capa vermelha «Die Fackel» («O Archote»). Quanto à revolucionária ciência que escandalizou o século, Kraus iria ainda mais longe na alusão verrinosa do que Musil: «A psicanálise é essa doença do espírito que se considera a ela própria como sendo o seu remédio.»
«Die Fackel», concebida e «incendiada» por obra e graça de Karl Kraus (1874-1936), foi publicada pela primeira vez em Abril de 1899 e só se extinguiria trinta e sete anos mais tarde, após vinte e duas mil e quinhentas páginas, novecentos e dois números, centenas e centenas de artigos (a partir de 1912 na sua totalidade escritos pelo editor), «compridos e breves, satíricos, aforísticos, poéticos, ensaísticos e dramáticos, depois de retratar uma multidão de personagens da vida cultural e política sobretudo da Áustria mas também da Alemanha, depois de exercer o papel de um juiz implacável em matéria linguística, estética e moral» – sintetiza Adan Kovacsics, que seleccionou e traduziu os textos incluídos nesta antologia.
Textos de uma imensa variedade temática, a maioria dos quais espelhando contradições ou denunciando misérias da sociedade austríaca dos inícios do século XX. Ainda segundo as palavras de Adan Kovacsics: «Desde os escritos iniciais de carácter sobretudo político, passando pela reprovação das injustiças cometidas pela justiça e a moral masculina contra as mulheres, pela crítica da burguesia liberal que imperava naquele momento, pela denúncia da venalidade da Imprensa que escondia o que era público e trazia à luz do dia o que era íntimo e o privado, pela reivindicação de uma arte e a desaprovação de outra entremeada com o jornalismo, pelo repúdio da destruição da natureza e de um progresso que não estava ao serviço do espírito humano, pela censura da palavra jornalística e da sua cumplicidade com a guerra, pelas esperanças, logo frustradas, que suscitou o fim da contenda bélica e da monarquia e a implantação da República na Áustria, pela dedicação contínua a preservar a cuidar da língua que via ameaçada, até chegar a enorme inquietação que paralisou Karl Kraus ao ver o nacional-socialismo chegar e governar a Alemanha.»
As contradições estavam à vista, mas ninguém melhor do que Robert Musil punha o dedo na ferida: «A constituição era liberal, mas o regime clerical. O regime era clerical, mas os habitantes livres-pensadores. Todos os burgueses eram iguais perante a lei, mas, precisamente, nem todos eram burgueses.» Karl Kraus falava noutro comprimento de onda, talvez muito distante mas evidenciando uma arrepiante capacidade de anunciar o nazismo: «Viena é um campo de ensaios para a destruição do mundo.»
Quem assim pensava tinha de arredar do seu horizonte um polido humor de salão, trocando a delicada subtileza da ironia pela feroz lucidez do sarcasmo. Durante os primeiros doze anos, fez publicar na revista, além dos seus escritos, textos de intelectuais da estirpe de Heinrich Mann, Arnold Schönberg, Franz Werfel, Hugo Wolf, August Strindberg. Depois, porém, «Die Fackel» foi apenas (d)ele, (d)a sua raiva iconoclasta: raiva do feminismo, do sionismo, de jornais e jornalistas, de escritores célebres, da psicanálise. Raiva de tudo e de todos? Certamente que não, porque também ele tinha seus ídolos: acima de todos, ficou claro, a verdade. Não uma verdade com maiúscula, ontológica, metafísica, espaventosa: «apenas» – como se isso fosse coisa de somenos – a humilde verdade dos factos.
Salientam Allan S. Janick e Stephen E.Toulmin, num livrinho precioso que intitularam «Wittgenstein’s Vienna»: «Utilizava a polémica e a sátira como armas para afastar os homens de tudo quanto há de superficial, de corrupto e de desumanizante no pensamento e na acção, para os conduzir à ‘origem’ de todos os valores e regenerar assim o conjunto da cultura. Os seus aforismos eram dirigidos contra a hipocrisia que, na Viena do seu tempo, passava por moralidade, e contra as frioleiras que passavam por arte. O seu espírito cáustico deveria ser útil à educação cívica e cultural dos seus compatriotas porque, segundo ele, a crise da sua época provinha de um mal-estar espiritual, sendo secundários os problemas políticos.»
Denunciando a degradação da cultura e da sociedade, ao mesmo tempo que encabeçava causas como a da despenalização da homossexualidade e da prostituição, Karl Kraus oferecia-se como um alvo a abater à burguesia bem-pensante e à Imprensa por ela tutelada. Foi implacável para com os jornais e os jornalistas: «Quem nos tortura com as suas impressões? Quem nos apresenta as suas interpretações ao mesmo tempo que os factos? Quem leva na sua peugada um cortejo de personalidades importantes, informadas, actualizadas, iniciadas, dando crédito ao que elas afirmam e aprovando-as, impositivos parasitas do supérfluo? A Imprensa é um mensageiro? Não, ela é o acontecimento! Um discurso? Não, a vida! Uma vez mais o instrumento foi mais forte do que nós. Colocámos o indivíduo encarregado de alertar em caso de incêndio, e cujo papel no Estado deveria ser inteiramente subalterno, mais alto do que o incêndio, mais alto do que a casa, mais alto do que o acontecimento e mais alto do que a nossa imaginação.»
Quem poderia subscrever tais opiniões num jornal dito «de referência», ontem em Viena, hoje também nela ou em qualquer outra capital europeia?
Karl Kraus, «La Antorcha», Acantilado, 2011, 552 páginas