António Rego Chaves
Em Agosto de 1935, o jovem Lawrence Durrell (1912-1990), depois de ler o «Trópico de Câncer», envia ao «velho» Henry Miller (1891-1980) uma missiva encomiástica onde classifica a obra como «a única digna do Homem de que este século se pode gabar», pois «fixa no papel o sangue e as tripas da nossa época». A resposta chega no mês seguinte: o norte-americano de Brooklyn, Nova Iorque, agora instalado em villa Seurat, Paris, garante ao anglo-irlandês nascido na Índia e residente em Corfu, Grécia: «Você é o primeiro britânico que me escreveu uma carta inteligente sobre o meu livro.»
Foi apenas o começo de uma correspondência e de uma amizade que se iriam prolongar durante 45 anos, até à morte de Miller, sem mancha de deslealdade ou de ausência de generosidade. O veterano encoraja o neófito a publicar o «Black Book» e promove, mesmo, a sua primeira edição pela «Obelisk Press», na capital francesa, ao arrepio dos mais que previsíveis ímpetos censórios da «Pudding Island» (a expressão é de Durrell). Ao longo da vida, ir-se-ão encontrando, «à bebida e à conversa», por esse mundo fora, seja em França, na Grécia ou nos Estados Unidos da América.
A «Correspondência» fala-nos das obras dos dois autores («Big Sur» ou «O Colosso de Maroussi», «O Quarteto de Alexandria» ou o «Quinteto de Avignon», por exemplo), mas nem sempre no mesmo tom. Durrell não se dispensa de atacar frontalmente «Sexus», Miller manifesta a sua perplexidade perante «Monsieur ou o Príncipe das Trevas». É uma conversa franca mas amena entre dois verdadeiros amigos, sem ponta de deslocado e mesquinho «ciúme» literário – a proximidade afectiva que os liga nunca sai sequer beliscada das divergências de opiniões.
Obras de grandes figuras da literatura de todos os tempos – Homero e Rabelais, Shakespeare e Balzac, Rimbaud e Baudelaire, Joyce e T. S. Eliot, D. H. Lawrence e Dylan Thomas, Céline e Cendrars, John Cowper Powys e Georges Séféris, Knut Hamsun e Yukio Mishima – estão bem presentes no diálogo entre os insaciáveis devoradores de livros que foram ambos os escritores. Mas não é apenas de letras que trata esta «Correspondência». Diria mesmo que a escrita não é o seu principal tema – mas antes de tudo a existência, por vezes vertiginosa, de homens que, como o Gauguin de «Noa-Noa» ou o Nijinski do «Diário», embora notáveis pelas suas obras, nunca deixaram de centrar a sua atenção na vida que viveram ou desejavam viver.
Recordações de grandes obstáculos para satisfazer o estômago ou de alguma euforia financeira, de invejável saúde e preocupantes doenças, de casamentos, divórcios, pensões alimentares a ex-mulheres, paixões, mortes de seres amados, ligações sentimentais e sexuais esporádicas, confraternizações gastronómicas e alcoólicas, cirurgias, tudo vai deixando o seu rasto nestas páginas fascinantes pela verdade humana com que nos confrontam – ou seja, pela sua transparente e indesmentível autenticidade.
A primeira edição da «Correspondência» estendia-se apenas até 31 de Outubro de 1959 e fora publicada parcialmente em França quatro anos depois. Aquela a que hoje temos acesso não só inclui as passagens antes expurgadas como envolve quase duas centenas de páginas escritas entre o início de Novembro de 1959 e 1980. Particularmente reveladoras da profunda amizade entre os dois homens são as cartas dos últimos anos, marcadas pela decadência física de Miller – e pela sua coragem ao enfrentá-la, bem como à morte que compreende estar prestes a chegar. Já há muito passados os oitenta anos, encontra o derradeiro dos seus grandes amores, a actriz Brenda Venus. Quase cego e surdo, confinado a uma cadeira de rodas, ainda arranjará ânimo para escrever a Durrell: «Mas tudo isto – enfermidades e outras coisas – não é nada quando o amor está presente. Larry, é demasiado maravilhoso para que se possa acreditar em tal coisa.» (…) «Há mais de três anos, e pela primeira vez na minha longa vida, vivo com Brenda uma relação perfeita, harmoniosa – um amor profundo.» Dir-se-ia uma última lição dirigida a todos os que se atreveram a classificá-lo como um autor «pornográfico» e em nome de cujo serôdio puritanismo «Primavera Negra», «Trópico de Câncer» e «Trópico de Capricórnio» esperaram dezenas de anos para ser editados nos EUA. Era digno de maior respeito o criador que profetizara: «Parece-me claro que passarei da arte para a vida, a fim de ilustrar pela minha forma de viver o que porventura tenha dominado por meio da arte.» Aliás, a voz do autor do «Black Book», do «Quarteto de Alexandria» e do «Quinteto de Avignon» parecia ter utilizado idêntico comprimento de onda quando sentenciou: «O tema da arte é o da própria vida. Sofremos todos dessa distinção artificial entre artistas e seres humanos.»
Lawrence Durrell/Henry Miller, «Correspondance 1935-1980», Buchet Chastel, 2004, 781 pag., 34 €