António Rego Chaves
Que havia de comum, em 1977, entre António José Saraiva, Carlos L. Medeiros e José Baptista, figuras tutelares de Raiz & Utopia? Pelo menos o anti-sovietismo, o anticomunismo e o antimarxismo. Não importa agora de onde vinha ou para onde ia cada um deles – só se impõe salientar que subscreviam um projecto que era, no dizer de Helena Vaz da Silva, «restaurar a importância do pensamento autónomo» (seria possível restaurar o nunca instaurado?), «nem enfeudado ao modelo político de Leste» (divisa-se uma luz rosa/laranja ao fundo do túnel), «nem satisfeito com o modelo economicista de mercado» (mas alguém já viu um modelo humanista de mercado?).
E continuava Helena Vaz da Silva, em 1997, no 20.º aniversário da «sua» revista: «Nós queríamos uma terceira via – personalista ‘après la lettre’, ambientalista ‘avant la lettre’. Não prescindíamos de pensar a sociedade, mas queríamos também melhorar a vida. Procurávamos religar pensamento e acção mas com um novo enfoque sobre a oposição entre o indivíduo e o Estado, a substituir a tradicional oposição Leste/Oeste, esquerda/direita.» Tresandava a «déjà» lido. E era. O resultado ficou à vista: a terceira via nunca existiu: ou capitalismo real, ou socialismo real. Viesse o Diabo e escolhesse o capitalismo ideal ou o socialismo ideal. O Diabo burguês ou o Diabo proletário. Essa a alternativa. O resto não tinha sólida Raiz, era mesmo só vaporosa Utopia.
Congratulemo-nos, no entanto, com o surgimento desta esclarecedora antologia de mais de um milhar de páginas que nos permite (re)ler, entre outros, Agustina Bessa Luís, António José Saraiva, Cornelius Castoriadis, Edgar Morin, Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, Herbert Marcuse, Marguerite Yourcenar, Maria Antonietta Macciocchi, Nuno Bragança, Oliveira Marques, Roger Garaudy, Serge July, Sylvia Plath ou Umberto Eco. Por vezes, é surpreendente – ou talvez seja sobretudo irónico – registar como o tempo passa e as ideias se metamorfoseiam até quase tornarem irreconhecíveis os seus muito humanos, demasiado humanos, portadores. Basta ler com alguma atenção certas entrevistas em que entrevistador e entrevistado, vivendo e congratulando-se por viver na mesma galáxia reaccionária iniciada com o 25 de Novembro de 1975 e sentindo-se já libertos do «terrífico» Processo Revolucionário Em Curso, ainda conservam alguns tiques próprios de quem se viu por uns tempos forçado a adaptar-se e mudar de registo – regressando, com pezinhos de lã, às suas tão amadas comodidades, a caminho de 1981. Na verdade, a revista deixou então de ser ideologicamente «necessária» para fazer frente aos que se haviam batido por uma sociedade socialista, quando o general Ramalho Eanes foi pela segunda vez Presidente da República e a chamada Aliança Democrática (AD) persistia em governar Portugal.
Tomemos um exemplo. Em 1979, o ex-comunista Roger Garaudy passa três dias em Lisboa. Num diálogo público moderado pela então directora da revista, Helena Vaz da Silva, esta afirma que «nascemos e crescemos num tempo em que a socialismo se opunha capitalismo, a direita se opunha esquerda, a liberdade se opunha ditadura». Quereria significar que esse tempo já tinha acabado? Decerto que sim. Mas, a seguir, Teresa Santa Clara Gomes ousa falar de «instituições da democracia formal» como sinónimo de democracia parlamentar, claro está que em oposição a «democracia socialista»; depois, Eduardo Prado Coelho soletra, aparentemente com a maior naturalidade, a expressão «mecanismos da democracia formal», obviamente induzindo os seus auditores a contrapor-lhes os «mecanismos da democracia real ou material». Pretenderiam insinuar que poderia ou deveria existir uma verdadeira democracia? Diríamos que sim, que não estavam satisfeitos com o formalismo da democracia que tínhamos – e continuámos a ter. Mas há mais: tendo em conta que a «democracia formal» em causa é inseparável de eleições e da existência de partidos políticos que se fazem representar no Parlamento, sob o olhar distante mas interveniente do Presidente da República, então entendemos em toda a sua extensão estas sentenças de Roger Garaudy: «Um verdadeiro socialismo não pode realizar-se no interior de um modelo ocidental de crescimento. (…) Um socialismo não pode realizar-se dentro de uma visão individualista do homem.» (…) «Nenhum socialismo pode desenvolver-se ignorando a fé. Só de um encontro inédito entre o socialismo e a fé pode resultar algo que não seja um novo estalinismo.» O que o velho ex-comunista pedia aos seus ouvintes portugueses era, pois, que não perdessem de vista o tempo em que tinham nascido e crescido, mas que repensassem a esquerda contra a direita, a liberdade contra a ditadura, o socialismo contra o capitalismo. Precisamente o contrário do que lhes fora sugerido por Helena Vaz da Silva.
«Raiz & Utopia» acabou um pouco pela mesma razão que acabou «O Tempo e o Modo» na sua versão «maoísta» – porque passou a ser dispensável. Porque já nem sequer se pretendia combater uma «Seara Nova» que se deixara «afundar», tragada por uma espécie de «esquerda caviar» que se recusava a discorrer sobre capital e trabalho para falar na energia nuclear, na ecologia, na agricultura biológica, na religião, nas relações interpessoais, nas comunidades de base, na droga, no ensino, no feminismo, na delinquência, no sistema prisional, na psiquiatria, na imaginação e na criatividade, nas sociedades burocráticas, na homossexualidade, nos marxismos – mas não no marxismo do jovem Marx, isso nunca, porque era «uma invenção do século XIX», porque «há muito que estava «ultrapassado», porque conduzia em linha recta ao «totalitarismo». Como escreveu Helena Vaz da Silva em 1997, «Raiz & Utopia» não parou por falta de leitores, mas porque os seus responsáveis entenderam «que se tinha esgotado o seu projecto, que estava cumprida a sua missão de proclamar uma nova atitude face à vida e à política». A verdade é que conseguiu desviar de vez a atenção de muitos, até então centrada na luta de classes, para outros horizontes. Esse não terá sido o menor dos êxitos da sua «histórica» cruzada ideológica.
Raiz & Utopia, Memória de uma revista 1977-1981, Centro Nacional de Cultura, 2006, 1074 páginas