António Rego Chaves
Verdadeiro manifesto francês da «Reacção» (termo reivindicado por Léon Daudet) em 1922, «O Estúpido Século XIX» merece ainda hoje uma leitura muito atenta, tal como, aliás, o celebérrimo «Syllabus dos principais erros» desse mesmo século, da responsabilidade de Pio IX, dado a conhecer aos fiéis, juntamente com a encíclica «Quanta Cura», em 1864. A análise das 22 «insanidades assassinas» que se teriam abatido sobre o século XIX não será menos instrutiva, para quem quiser compreender a época, do que o conhecimento dos 80 «erros» indexados pelo dito Papa da infalibilidade.
Eis «O Estúpido» posto a nu. Pio IX já estigmatizara o panteísmo, o naturalismo e o racionalismo absoluto, o racionalismo moderado, o indiferentismo, o latitudinarismo, o socialismo, o comunismo, as sociedades secretas, as sociedades bíblicas e as sociedades clérico-liberais, os «erros relativos à Igreja e seus direitos», os «erros referentes à sociedade civil considerada em si mesma ou nas suas relações com a Igreja», os «erros acerca da ética natural e cristã», os «erros acerca do casamento cristão», os «erros relativos à soberania temporal do Pontífice Romano» e os «erros que se referem ao liberalismo moderno». Fundador, com Charles Maurras, da monárquica «Action Française», Léon Daudet (1867-1942) amplifica, à sua maneira contundente, a lição papal, e aponta as principais estupidezes que, em sua opinião, se abateram sobre o século XIX. Algumas delas: o cientismo, as ideias de progresso e de democracia, o culto da Revolução Francesa, a instrução laica, as teses segundo as quais a religião é filha do medo, todas as religiões possuem idêntico valor e Deus não existe senão na e pela consciência humana, a sede de igualdade, a apresentação da propriedade como um «roubo» e do capital como gerador da guerra, as teorias evolucionistas, a negação da existência de uma verdade absoluta.
Mas aonde começara o mal? Não certamente na Idade Média que, longe de ter sido uma «época de trevas» em França, «é dominada, quanto ao espírito, pela incomparável escolástica» (…) «e por São Tomás de Aquino; quanto à pedra, pelas catedrais; quanto ao movimento, pelas Cruzadas, cuja culminação é Joana d’Arc.» Tão-pouco o mal se iniciara no Renascimento, personificado – em França, «umbigo do mundo» para o chauvinista, xenófobo e «anti-semita» Léon Daudet – por Francisco I, «com a sua prodigiosa coroa de artistas, de poetas, de eruditos», Rabelais, Montaigne e tudo o que se seguiu. E pergunta, candidamente: «Pois a revelação de Aristóteles por São Tomás não se encontrará na origem do Renascimento?» Como se Averróis, a Itália e o «Quattrocento» nunca tivessem existido…
O mal – ou seja, a estupidez – tivera origem com a Reforma de Lutero (um alemão, claro está). Que significou? Nada mais, nada menos, do que «o assombramento do espírito europeu pela negação do milagre, a deificação do instinto e da cobiça bruta». (…) «Da Reforma saem Rousseau em Genebra e Kant em Königsberg. Este último abala a razão ocidental com esse esgotamento da realidade que se chama criticismo transcendental, e negando a adequação da coisa ao espírito, do mundo exterior ao mundo interior.» Mas «o pior» estava para vir. A Revolução Francesa.
A Revolução de 1789, «directamente inspirada em Rousseau, depois na Enciclopédia. É o fim do século XVIII e também a aurora sangrenta do XIX.» Estupidez das estupidezes, Napoleão Bonaparte seria «uma espécie de paródia sacrílega das Cruzadas. Ele representa a Cruzada por coisa nenhuma». A Idade Média nada tem a ver, o Renascimento quase nada tem a ver, com o espírito e o corpo do século XIX francês. Mas a Reforma, essa sim, é ela a mãe execrável da execrável Revolução. «Com efeito, que é o Romantismo senão a Revolução em literatura, que retira ao pensamento a sua disciplina e ao verbo a sua riqueza, com o seu rigor?»
Porquê esta sanha incontida contra a Reforma? Só porque Lutero nasceu na Alemanha, país odiado? «Porque o espírito reformador, ou rousseaunístico, ou revolucionário (é tudo o mesmo), presume ele próprio este erro de raiz – e mortífero para as ideias gerais – que consiste em crer que se inova sem continuar.» Mas não terá Lutero inovado e continuado o cristianismo?
Contudo, o adversário – melhor, o inimigo – não está ainda completamente identificado por Léon Daudet. É a altura de levantar uma ponta do véu com que até agora ocultou os sinistros vilões desta história: «O século XIX é o século por excelência da banca e da finança, portanto o século judeu. Porque o povo judeu tem, nesta matéria, um formidável avanço sobre o povo francês e a sua posição internacional permite-lhe jogar pelo seguro na Bolsa. A finança internacional compreendeu a importância nova da Imprensa, nomeadamente em França; e apoderou-se, por diversos meios, da Imprensa de grande tiragem, dita de informação.» Teria sido graças a esta «manobra, essencialmente plutocrática, em que o dinheiro comanda o pensamento e orienta a opinião pública», que se impôs o «culto aberrante» das instituições e teses democráticas, essas «insanidades assassinas».
Léon Daudet faz desfilar políticos, escritores, filósofos, legisladores e cientistas que tornaram o século XIX francês num século «estúpido» e quase sempre republicano. Políticos como Napoleão, Gambetta ou Jaurès, escritores como Chateaubriand, Victor Hugo, Leconte de Lisle, Michelet, Taine, Flaubert , Lamartine, George Sand, Maupassant, Rostand ou Zola, filósofos como Renan, Comte ou «o pequeno judeu» Bergson, legisladores como «o judeu» Alfred Naquet ou Paul Bert, cientistas como Claude Bernard, Charcot, Pasteur. Mas os que mais o incomodam são talvez Lamarck e três «gigantes» não-franceses: Darwin, Freud e Einstein. A Reacção estrebuchava – e recusava-se a olhar os humanos à luz da selecção natural, do inconsciente, do relativismo. Ainda hoje está a estrebuchar.
Lón Daudet, «Le Stupide XIXe Siècle, Exposé des Insanités Meurtrières qui se Sont Abattues sur la France Depuis 130 Ans (1789-1919)», Bibliolife, s/data, 310 páginas