António Rego Chaves
Diz o teólogo católico Otto Hermann Pesch que «o conceito teológico fundamental de ‘amor’ vem sendo nos últimos decénios objecto de discussão não extensa, mas bem intensiva, onde está precisamente em jogo em que sentido ele é o conceito teológico fundamental». E acrescenta: «Começou com a conhecida formulação de Hans Urs von Balthasar: ‘Só o amor é digno de fé’, que se deve, por sua vez, à nova e radical reflexão cristológica de Karl Barth.» Conta-se que João XXIII, interrogado acerca do nome do maior teólogo do século XX, teria respondido: «Não creio que seja um teólogo católico. Penso que é Karl Barth.» Posto a par do teor desta apreciação, teria o pensador protestante ironizado: «Começo a acreditar na infalibilidade pontifical!»
Na verdade, Karl Barth «seguiu Kant e Schleiermacher na esteira de uma teologia liberal que fala do sentimento religioso mais do que da fé e do homem mais que de Deus» (Marcel Neusch/Bruno Chenu). Expulso da Alemanha em 1935, continuou a apoiar a resistência ao hitlerismo mas apelou para a misericórdia após a vitória dos Aliados, ao mesmo tempo que se recusava a fazer parte das fileiras ideológicas do anticomunismo. No último ano da sua vida, em 1968, proclamou: «A última palavra que tenho a dizer, enquanto teólogo e enquanto político, é um nome: Jesus Cristo.»
Também suíço, o sacerdote católico Hans Urs von Balthasar (1905-1988) abandonou a Companhia de Jesus em 1950 para se consagrar inteiramente ao instituto secular que fundou com Adrienne von Speyer, tendo feito publicar 50 volumes da obra da notável mística. Proclamava: «Não podemos entender-nos entre Deus e o homem senão na língua de Deus.» Daí o papel fulcral que concede à Revelação, que considera ser a única resposta válida à inquietação metafísica. Concebe assim a Teologia como uma contemplação e interpretação do mistério do Cristo manifestado através da história.
Tanto os crentes, como os descrentes, como os que vivem na dúvida encontrarão nesta obra de Hans Urs von Balthasar ideias a reter: presumimos que os primeiros preferirão os últimos capítulos, ao passo que quem não se sente tocado pela graça elegerá aqueles que têm como títulos «A Redução Cosmológica» e «A Redução Antropológica».
Nas dezenas de páginas iniciais é por vezes difícil distinguir a Teologia da Filosofia. Dotado de uma sólida cultura em ambos os domínios, o autor, neste ensaio que Artur Morão, responsável pela apresentação, sugere ser uma «introdução à fé cristã» ou à «essência do cristianismo», afirma que «procura apenas seguir o pensamento dos grandes santos ao longo da tradição teológica: «Agostinho, Anselmo, Inácio, João da Cruz, Francisco de Sales, Teresa de Lisieux…» E explica o porquê da sua escolha: «Os que amam são os que mais sabem de Deus; a eles deve o teólogo dar ouvidos.»
Mas não só a eles. No primeiro capítulo, o Nicolau de Cusa de «A Paz da Fé» é escutado com a devida atenção, quando nos diz que a diversidade das religiões se deve sobretudo à ingenuidade das pessoas incultas e reside mais nos ritos do que do que naquilo que por meio destes se significa; e que os sábios de cada religião deveriam encontrar-se facilmente no lugar espiritual onde toda a sabedoria parcial tem o seu centro único e universal. Refere longamente, depois, o Thomas More de «A Utopia»: «A ausência de violência em todas as coisas da religião, sobretudo na sua difusão, corresponde à atitude de Cristo, a comunidade dos bens equivale à ‘vida em comum dos primeiros apóstolos que Cristo tanto aprovara’, a atitude perante Deus informada pelo puro respeito e por um amor afável, por uma oração pessoal e comunitária fervorosa, deixa transparecer a cristã, a fé viva no além, a concepção da morte, a crença nos milagres, o serviço desinteressado para com os congéneres, levado a cabo ‘com a plena renúncia a qualquer agradecimento’», (…) «estes e outros traços provam assaz que a religião de ‘A Utopia’ é um ‘símbolo’ da religião cristã».
Quanto ao segundo capítulo, salienta-se que, a partir de Lutero e do Renascimento, «o conflito confessional e o desencantamento da imagem do mundo operam conjuntamente a viragem lisa para a religião puramente humana, de carácter sobretudo ético.» Assim, para John Locke (1695), «o dever do homem é aquilatar uma revelação que vem ao seu encontro de acordo com a norma da sua razão»; para John Toland (1696), a questão que se põe é a das desfigurações sofridas pelo cristianismo primitivo; para Matthew Tindal (1730), existe uma religião natural na qual nenhuma autoridade sacerdotal tem competência para mudar seja o que for. Kant quase fecha o ciclo, com o que chama «fé religiosa pura», ou seja, «a doutrina bíblica da fé, tal como pela razão consegue desabrochar a partir de nós próprios.»
Escreve o autor: «Da grande encruzilhada que é Kant parte ainda uma via derradeira: nela se encontram aqueles que, desde sempre, merecem ser tomados mais a sério: são os que concretizam, de forma resoluta, os princípios abstractos e idealistas. Se o hiato e o desnível entre o homem empírico e a humanidade ideal são tão consideráveis, não será porque nenhum indivíduo pode ser a humanidade, e porque ele, para a vislumbrar, deve ao menos encontrar o outro? Ludwig Feuerbach foi quem afirmou esta coisa tão simples. O homem só existe coexistindo, só é real na contraposição do eu e do tu. O ser-outro do outro é o facto fundamental que importa reconhecer, para em geral se poder enxergar uma comunidade e a harmonia na comum posse da natureza humana.» Diz-nos nos «Princípios da Filosofia do Futuro»: «A nova filosofia assenta na verdade do amor – onde não há amor, não há verdade». Ou seja, só no amor do outro é que o homem se encontra no caminho que vai do homem à humanidade. Daqui partirão Marx, os personalistas e os socialistas religiosos (cristãos ou não cristãos). Quanto a Hans Urs von Balthasar, fica-se pelo campo do amor a Deus e de Deus, onde, apesar de «a razão compreender que o incompreensível existe», mas conservando nós uma indelével memória do Livro de Job e do Eclesiastes, já não sabemos acompanhá-lo…
Hans Urs von Balthasar, «Só o Amor é Digno de Fé», Assírio & Alvim, 2008, 127 páginas