O negador de Deus
António Rego Chaves
Dizia José Saramago ao excelente jornal espanhol «El País», em Outubro de 2009, após a publicação em castelhano e catalão do seu «Caim», que tão amaldiçoado seria por guardiães de variadíssimos templos conservadores, embora menos do que «O Evangelho segundo Jesus Cristo»: «É muito fácil condenar Caim por fratricídio, e eu também não o absolvo, que isso fique claro. O que faço é pôr uma parte da culpa em Deus: Ele, que tudo sabe, podia ter evitado isso. A sua responsabilidade é que, quando os dois irmãos oferecem o produto do seu trabalho, Caim, sendo agricultor, oferece-lhe hortaliças, e Abel, como é pastor, oferece-lhe carne. Deus fica encantado com a gordura do cordeiro ardendo na fogueira e despreza as oferendas de Caim. Que espécie de deus é este que, para enaltecer um, despreza o outro, de uma maneira tão provocadora? Caim é humilhado por Deus, e mata o seu irmão porque não pode matar Deus, que é o que quereria.»
A questão essencial acerca das relações entre Deus e Caim ficava, pois, equacionada em termos nada «ortodoxos». Deixemos por agora o doce Abel, segundo filho de Adão, nómada e pastor, o preferido de Deus, que morreu assassinado pelo irmão e sem descendência conhecida. A verdade é que talvez sejamos todos filhos de Caim, o sedentário, o laborioso agricultor – ou talvez de Set, que Adão gerou, segundo a Bíblia, aos 130 (sic, cento e trinta) anos, ou, ainda, de seres anónimos, dos dois sexos, que «o primeiro homem» também «produziu» com a sua companheira Eva durante os 930 (sic, novecentos e trinta) anos que o Génesis diz ter vivido.
Os autores deste livro são psicanalistas, professores de literatura, escritores: cada um à sua maneira se debruça sobre o tema, preferindo uns centrar a sua atenção na comparação entre Caim e Abel ou e na inveja, talvez mútua, que tanto os separa como os une, outros na atitude de Deus para com cada um deles. A óptica de José Saramago está por vezes presente, mas, a nosso ver, nem sempre tão explícita e aprofundada quanto desejável. No que respeita à dissertação sobre a inveja, tema de resto muito menos digno de ser tratado por teólogos, porque bem mais «realista» ou terra-a-terra, nada de novo parece vir a lume, pois trata-se de um sentimento tão constante e bem distribuído entre os humanos que se pode com fundamento duvidar de que poucos o não conheçam por um saber quase diário de experiência feito.
Jean-Jacques Marie, professor de literatura, evocando o romance «A Leste do Paraíso», de John Steinbeck, e o poema «Quaïn», de Leconte de Lisle, põe o dedo na imensa ferida que, alguns anos mais tarde, viria também a ser escalpelizada pelo tão «nosso» quanto maltratado «Nobel» José Saramago: «Caim é condenado e rejeitado por Deus antes de ter cometido o seu crime.» (…) «Pode-se desde logo perguntar se Caim não terá matado [Abel] para protestar contra a injustiça, para se vingar do Todo-Poderoso que, como um ditador sem fé nem lei, condenou à partida aquele que ainda não é culpado ou que só o é por decisão arbitrária do criador.»
André Maurois, na sua biografia de Lord Byron, acentuara: «De todos os dramas, o mais revelador foi o seu ‘Caim’. Desde a infância que estava obcecado por este tema do primeiro predestinado, do homem condenado por Deus antes do crime.» (…) Adianta Jean-Jacques Marie: «O Caim de Byron submete a divindade ao seu próprio julgamento e afirma, desta mesma forma, a sua independência e dignidade perante o Todo-Poderoso.»
O deus que então nos surge fica reduzido ao papel de um tirano absoluto que, sem se dignar explicar aos seus súbditos a razão das escolhas que faz, exerce um poder injustificável, porque totalmente arbitrário. Caim encarnaria, pois, a revolta contra um tal poder, um poder «estalinista», insinua Jean-Jacques Marie, autor de vários estudos sobre o ex-seminarista que presidiu aos destinos da URSS durante cerca de três dezenas de anos.
Neste contexto se recorda «As Flores do Mal» de Baudelaire: «Raça de Abel, come, bebe e dorme; /Condescendente, Deus sorri-te./Raça de Abel, ama e pulula!/ O teu ouro também faz filhos. /Raça de Abel, cresces e pastas/Como os percevejos do bosque!» Mas Caim, diz o ensaísta, «é mais ainda do que o filho ou o irmão de Prometeu que se contenta em pregar partidas a Zeus, é o filho ou o irmão dos Titãs que se lançam ao assalto do Olimpo, o pai dos construtores da Torre de Babel (ou seja, da cidade), o pai dos revoltados de todos os séculos que hão-de vir, o negador de Deus.»
Édith Wolf, especialista de mitologia, reforça a aproximação entre o papel histórico dos mitos de Caim e Prometeu: «Ambos apresentam imagens do progresso técnico desaprovadas pela divindade por tornarem possível uma emancipação suspeita. Ilustram a ambiguidade do julgamento da religião no que se refere ao conhecimento e à acção humanos. Ora, o destino de Caim é precisamente o de um homem de acção. Se ‘inventou’ a inumação e o luto, fez sobretudo aparecer a morte nos factos. Deus decidiu a existência do trabalho e da morte. Caim, agricultor, ferreiro, assassino, ‘pô-los no mundo’.» A sua missão é portanto a de encarnar o mal, a de lhe dar um corpo e um espírito humanos. Transforma o absoluto, o radicalmente estranho, em familiar, o que explica a ambiguidade tão característica das suas representações míticas. Esta passagem foi possível por meio de actos.»
- - - -
Títulos e autores dos textos desta obra, dirigida pelo psicanalista e escritor Jacques Hassoun para as «Éditions Autrement» e publicada em francês no ano de 1997: «Todos nós nascemos de uma longa linhagem de assassinos» (Jacques Hassoun); «As imagens da ambiguidade» (Édith Wolf); «O pai das artes, das armas e das leis» (Jean-Jacques Marie); «No princípio era a inveja» (Pascale Hassoun); «Caim e Abel» (Shmuel Trigano); «De Caim a Deus, ‘ao fim de algum tempo’» (Frédéric Boyer); «Um no outro» ( Didier Daeninckx); «De uma génese a outra…» (Édith Wolf).
Jacques Hassoun, «Caim», Pergaminho, 1998, 134 páginas