António Rego Chaves
O filósofo inglês Francis Bacon foi, talvez, um dos pensadores que mais depressa entenderam o sentido e alcance de «O Príncipe», ao afirmar: «Estamos muito reconhecidos a Maquiavel e a outros como ele, que escrevem aquilo que os homens fazem, e não aquilo que devem fazer.» O autor de «A Nova Atlântida» (1621) que, tal como o Thomas Morus de «A Utopia» (1516) ou o Campanella de «A Cidade do Sol» (1623), concebeu o sonho de um Estado ideal, sabia do que falava. Na verdade, como entre nós sublinhou Carlos Eduardo de Soveral, antes de Maquiavel (1469-1527) «a história das ideias só conhecia uma declarada normatividade, pertença da moral.» (…) «Mesmo quando não se confundiam, ética e política davam-se as mãos, e a segunda poderia constituir um capítulo, ainda que bem caracterizado, da primeira.»
Há, pois, que não tomar em «O Príncipe» o que é descritivo por normativo – para concluir que o seu autor é acima de tudo um arguto repórter e um lúcido historiador de comportamentos dos políticos. O objectivo da acção destes não seria, segundo lhe foi dado observar, pôr em prática grandes ideais capazes de conduzir a Humanidade à formação e consolidação de sociedades mais perfeitas, mas apenas jogar o jogo do Poder – para o ganhar, seja a que preço for, retirando qualquer carga moral aos meios utilizados para alcançar os seus fins egoístas. Para os governantes – mas não para o repórter e historiador Maquiavel – tais mesquinhos fins, justificariam, de facto, todos os meios. Culpar o mensageiro desta desoladora mensagem pelo seu conteúdo seria tão absurdo como responsabilizar Pasteur pelos malefícios da raiva, embora o cientista francês tenha inventado a vacina capaz de nos tornar imunes a esta doença, ao passo que a denúncia do florentino em nada contribuiu para alterar a prática dos líderes políticos que nos últimos cinco séculos se têm assenhoreado dos destinos dos povos.
Michael White não se limita a apresentar-nos a vida e obra de Maquiavel, pois faz desfilar perante nós o contexto histórico italiano e europeu onde estas se inserem, o dos finais do século XV e o dos primeiros decénios do século XVI. Salientando quanto Maquiavel foi e continua a ser incompreendido pela generalidade dos seus leitores – acentue-se que até o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa define levianamente o «maquiavelismo» como um «sistema político, baseado nas ideias do escritor e político florentino Maquiavel e caracterizado pelo princípio amoral de que os fins justificam os meios e que a arte de governar deve estar acima de todas as preocupações de carácter ético, religioso…» – , o ensaísta britânico releva também que «os príncipes cujo comportamento ele dissecara de forma tão brilhante eram seus críticos tão ferozes como aqueles que pouco conhecimento tinham das verdades do mundo». É possível compreender uns e outros, mas, em boa verdade, o italiano limitou-se a proclamar, ainda que servido pelo seu inegável grande talento, não apenas que o rei ia nu, mas que os príncipes antigos e os da sua época sempre tinham andado em pelota, ainda que nenhum deles tivesse admitido tal prática.
Aconselhara os «profetas desarmados» a aprender a jogar com inteligência e eficácia o jogo que seriam forçados a jogar no interior do temível ninho de víboras habitado pela «classe política», pois sabia que a Europa estava cheia de gente cujo maior «pecado» era não ter assimilado as duras regras que ditavam a conquista e conservação do Poder. Em suma, queria desvendar aos seus contemporâneos os segredos do realismo político, a invenção e a técnica, a táctica e a estratégia, a «ciência» do Poder. Tanto «O Príncipe», como os «Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio» ou «A Arte da Guerra» e as «Histórias de Florença» nada mais são do que etapas obrigatórias de tal percurso: olhar e estudar o terreno, primeiro, encarar, depois, as possibilidades de nele actuar com êxito, escolher, a seguir, então mas só então, o caminho para alcançar os supremos objectivos visados, ou seja, a tomada e consolidação do Poder. Talvez melhor que ninguém, Jean Giono sublinharia o que de essencial estava subjacente nas concepções psicológicas, sociais e políticas do florentino: «Possui um tão grande desprezo pela alma humana, não, um tão grande conhecimento da alma humana que, para ele, um homem de confiança é um homem que ele pode comprar. Sabe que não se pode confiar totalmente senão nas fraquezas e, em particular, no interesse pessoal.»
Pessimista, Maquiavel? Tememos bem que não. Considerava que «é necessário ser um príncipe para compreender totalmente a natureza do povo e ser um vulgar cidadão para compreender totalmente a natureza dos príncipes». Talvez tenha encarado o cruel César Bórgia, filho do não menos cruel Papa Alexandre VI e aventureiro sem escrúpulos, como o «governante perfeito», pois aprendera à sua custa que «aquele que negligencia aquilo que é feito em benefício daquilo que devia ser feito efectiva mais rapidamente a sua ruína do que a sua preservação». Também sabia, por saber de experiência feito, que os homens «são ingratos, inconstantes, mentirosos e velhacos, fogem do perigo e são gananciosos» e não vislumbrava qualquer espécie de «salvação» para aquilo que considerava ser a natureza humana, estando convicto de que ninguém poderia ser ao mesmo tempo um bom cristão e um governante forte, condição esta indispensável ao eficaz exercício do Poder. Adverte Michael White, referindo-se a «O Príncipe»: «Todos os tiranos familiarizados com Maquiavel tornaram-se primeiro tiranos e só depois leitores dessa obra. Devemos ter sempre presente que Maquiavel estava a descrever o que observara durante muitos anos de serviço político e combinava isso com o seu conhecimento excepcional da história clássica. É ridículo inverter este facto e sugerir que qualquer figura política alguma vez foi mais do que superficialmente influenciada pela leitura de ‘O Príncipe’.» Que mais dizer em louvor do subtil e implacável analista político que foi Maquiavel?
Michael White, «Maquiavel, O Incompreendido», Europa-América, 2005, 312 páginas