António Rego Chaves
São muito diversos os motivos pelos quais inúmeros católicos contestam hoje a doutrina oficial da sua Igreja: Laura Ferreira dos Santos enumera vários a que é sensível («infalibilidade» papal, intolerância da hierarquia, recuos do ecumenismo, vestígios de anti-semitismo, «milagre» de Fátima, paternalismo, exclusão dos homossexuais, rejeição dos divorciados, condenação incondicional dos contraceptivos, da eutanásia, do aborto). Um deles, porém, jamais poderá superá-lo: ser mulher. Não se conformando com o lugar subalterno que o Vaticano lhe atribui – «como se pertencesse a um povo ou a uma “raça” supostamente inferiores», é-lhe recusado o sacramento da ordenação sacerdotal – repudia o androcentrismo católico e enceta uma penosa caminhada que a poderá conduzir ao agnosticismo ou ao ateísmo. Ou, talvez – quem sabe? – «a um processo lento de reencontro com um Deus diferente daquele em que acreditava», o Deus que tem permitido todo o sofrimento humano desde que o mundo é mundo e consentiu mesmo o escândalo do «mal absoluto» em Auschwitz.
No «Diário de uma Mulher Católica a Caminho da Descrença», a autora evidencia profundas discordâncias em relação ao conteúdo do já histórico texto elaborado pela Comissão Teológica Internacional, por ocasião do Jubileu do ano 2000, com o título «Memória e Reconciliação. A Igreja e os Erros do Passado» – que pecaria não poucas vezes por defeito, nomeadamente em relação à gravidade dos atentados cometidos pela hierarquia eclesiástica contra a dignidade da mulher – e denuncia as passagens da Bíblia, humilhantes para as pessoas do seu sexo, «que continuam a ser lidas nas missas todos os dias». Mas vai mais longe, não resiste à tentação do sarcasmo: «Para a Igreja, ser mulher é acima de tudo ser virgem ou mãe, se possível virgem e mãe como Maria. E dar à luz filhos que venham a ser padres.»
Sigamos a autora: «Podemos aceitar que Deus é homem e branco mas, obviamente, Deus não pode ser homem e branco, senão não seria Deus. Mas, então, como continuar a suportar todo o discurso que assim no-lo apresenta? Como ir para Deus no meio de toda esta linguagem e iconografia que o lança para o masculino e que, por isso mesmo, acaba por legitimar a existência de sete sacramentos para os homens, mas apenas de seis para as mulheres? Como aceitar que se fale num Deus-Pai, se esta expressão reforçou, e reforça ainda, o poder dos homens sobre as mulheres? Como adorar este Deus que contribui para o meu próprio rebaixamento como mulher?»
Várias teólogas feministas têm-se pronunciado no sentido apontado por Laura Ferreira dos Santos, que até agora já publicou obras como «Educação e Cultura em Nietzsche», «Pensar o Desejo a partir de Freud, Girard e Deleuze» ou «Alteridades e Feridas – Algumas Leituras Feministas do Cristianismo e da Filosofia». Rosemary Ruether, por exemplo, sublinhou há muito que qualquer cultura herdada de uma sociedade dirigida por pessoas do sexo masculino é sexista, isto é, discriminatória em relação a mulher. A Bíblia e as Igrejas fundadas sobre a sua interpretação seriam, portanto, estruturalmente sexistas. Também Elisabeth Schüssler-Fiorenza escreveu que toda a Bíblia traduz uma apreensão de Deus e da sua acção por uma mentalidade patriarcal opressiva no que diz respeito ao sexo feminino. Como sintetizou Letty M. Russell, afinal o que fica verdadeiramente em causa é um problema muito antigo e complexo, a saber, «a igualdade e a associação das mulheres e dos homens na Igreja e na sociedade».
É frequente afirmar-se que São Paulo foi um dos grandes responsáveis pelo androcentrismo institucional da Igreja Católica. De facto, lê-se na Primeira Carta aos Coríntios (14, 34): «Que as mulheres estejam caladas nas assembleias, porque não lhes é permitido tomar a palavra e, como diz também a Lei, devem ser submissas.» E na Primeira Carta a Timóteo (2, 11-12) tal directiva é reforçada: «Que a mulher receba a instrução em silêncio, com toda a submissão. Não é permitido à mulher que ensine, nem que exerça domínio sobre o homem. Que ela se mantenha, pois, em silêncio.» No entanto, na mesma Primeira Carta aos Coríntios (11, 5-6), São Paulo reconhece à mulher a possibilidade de rezar e profetizar em público, desde que cubra a cabeça com um véu simbolizando a sua tradicional subordinação ao homem. E, quanto à Primeira Carta a Timóteo, a grande maioria dos críticos considera hoje que a sua autoria é controversa. Seja como for, é bem certo que, numa cultura em que a mulher não ocupava um lugar social idêntico ao do homem, houve a ousadia quase diríamos «protofeminista» de declarar, na Carta aos Gálatas (3,28): «Não há judeu nem grego; não há escravo nem homem livre; não há macho nem fêmea. Porque todos vós sois um só em Cristo Jesus.»
Não se pode esquecer que tudo isto foi escrito há quase dois mil anos em sociedades muito diferentes daquela onde hoje vivemos e onde a mulher já consegue desempenhar praticamente todas as funções menos as de sacerdote católico. Anacrónico é que ela ainda seja forçada a lutar pelos seus direitos, dentro da sua própria Igreja – mais fraternal do que sororal –, contra uma hierarquia de varões pouco ou nada inclinada a renunciar a multisseculares privilégios androcêntricos. Batalhar lá dentro ou sair de vez – eis a alternativa. Tendo sempre presente que existe, sempre existiu e decerto continuará a existir lugar neste mundo para milhões e milhões de cristãos – e cristãs – sem qualquer Igreja...
Laura Ferreira dos Santos, «Diário de uma Mulher Católica a Caminho da Descrença – I», Editora Angelus Novus, 2003, 110 pag., 11.50 €