Sob a bota de Salazar
António Rego Chaves
Este livro não é bem um ensaio sobre as ideias da direita radical portuguesa durante o período que decorre entre 1939 e 1950. Trata-se mais de uma antologia, quase isenta de comentários por parte do seu autor, cujas tarefas principais parecem ter-se limitado a recolher e transcrever ou sintetizar os textos da época em causa relativos à sua investigação histórica. Arredaram-se assim, não apenas uma sólida contextualização da temática em estudo, como quaisquer eventuais juízos de valor acerca da ideologia abordada.
Dito isto, há que relevar que pelo menos uma conclusão fica bem clara, após a leitura destas páginas: a de que o salazarismo raramente se terá confundido com o fascismo «puro e duro» da extrema-direita portuguesa. «Viver perigosamente», como preconizava Mussolini, nunca foi, na verdade, ambição do «chefe» da chamada União Nacional, muito menos dos seus apaniguados; quanto a estes, quase todos parecem ter preferido «viver normalmente», como dizia o ditador, mas se possível enriquecendo.
No período estudado, considera Riccardo Marchi, o monarquismo e o nacionalismo portugueses reúnem-se em volta de três eixos: «o primeiro eixo firma-se no magistério de Alfredo Pimenta, o único intelectual proveniente do integralismo da primeira metade do século que se solidariza, sem hesitações e de forma militante, com o fascismo e o nacional-socialismo nos anos da guerra»; «o segundo eixo consolida-se na publicação do semanário ‘A Nação’ em 1946, um periódico abertamente solidário com os derrotados de 1945 e por isso criticado pelas restantes publicações nacionalistas, católicas e monárquicas afectas ao Estado Novo»; quanto ao terceiro eixo, é representado pelos «jovens da primeira geração neofascista portuguesa» que se exprimem no quinzenário «Mensagem», surgido em 1946 no meio do nacionalismo monárquico da Universidade de Coimbra.
A figura de Alfredo Pimenta, que durante a Segunda Guerra Mundial colaborou com a propaganda nazi e escreveu regularmente na revista «Esfera», financiada pela Legação da Alemanha, sobressai, pela sua craveira intelectual, entre toda a direita radical portuguesa do pós-guerra. Data de 1942 a seguinte «profissão de fé», publicada na já referida revista «Esfera»: «Lastimei, em 1918, o colapso da Alemanha; por este motivo, saudei o Feixismo [sic] italiano, o Nazismo alemão, o primoderiverismo [sic] espanhol; por esse motivo, disse a Gomes da Costa, nas vésperas de 28 de Maio, ‘não discurse nem escreva, desembainhe a espada!’. Por esse motivo, saudei o 28 de Maio e tenho acompanhado, com toda a simpatia, a obra dessa Revolução, comprometendo-me mais do que seria natural, dada a minha posição política [monárquica] constantemente afirmada. Por esse motivo, desejei, desejo e desejarei a vitória da Alemanha sobre as Democracias, em geral, e sobre o Comunismo em especial.»
Verberando a «vérmina democrática» ou a «alucinação bolchevista», reivindicando para a Itália, Portugal e a Alemanha «a repulsa dos falsos dogmas da Revolução Francesa» ou «o nojo pelas suas consequências», erguia também a voz «contra aqueles que, enfeudados, conscientemente, ou não, ao judaísmo internacional, à maçonaria e ao capitalismo, têm crises histéricas quando vislumbram, numa parada, a sombra vaga da cruz gamada e, por ódio a esta, andam a trabalhar para a destruição irreparável da cruz de Cristo.» «A combinação sacrílega de judeus, maçons, democratas e católicos pervertidos» era o alvo visado pelo panfletista.
Acentuou Eduardo Lourenço, depois de aludir ao «bem clássico nacional tradicionalismo de inspiração católica, mais ou menos integrista»: «O caso de um Alfredo Pimenta, monárquico e admirador convicto do fascismo, é excepcional na atmosfera cultural do antigo regime. E mesmo tão polémico autor nunca deixou de se cobrir com a referência ritual à ortodoxia católica.» Ou seja, irreverente, provocador, incómodo… «ma non troppo».
Seria, aliás, em 1948, muito peremptório quanto às suas opções em matéria de ortodoxia religiosa: «Se para ser católico é preciso filiar-me no Catolicismo progressivo e democrático, que se proclama antinazi e antifeixista [sic] – não serei católico, à face dos homens que celebram nas aras da Democracia. Mas continuarei a ser católico à face de Trento, da Igreja de Gregório XVI e de Pio IX e de Pio X». Anote-se: Pio XI, o Papa que em duas célebres encíclicas condenara o nazismo e o comunismo, não se «salva», como se poderia prever, mas nem Pio XII, o do «ensurdecedor silêncio» sobre os campos de extermínio, escapou à ira de Alfredo Pimenta.
«A Nação» (1946-1948), semanário dirigido por José O’Neill, apresentar-se-á assegurando a colaboração de Alfredo Pimenta, Plínio Salgado, Jacques Ploncard d’Assac, Manuel Anselmo, Fortunato de Almeida, Joaquim Lança, António G. Mattoso, Miguel Trigueiros ou Lança Moreira, entre muitas outras figuras da extrema-direita. Nele se distinguirão também os então jovens talentos de António José de Brito, Amândio César e Metzner Leone, todos eles aguerridos antidemocratas e anticomunistas.
O quinzenário «Mensagem» (1946-1950), tendo como sócios os estudantes monárquicos Caetano de Melo Beirão, Faria Pimentel e Gonçalves de Proença, contará com a colaboração de Alfredo Pimenta, Amândio César, António Manuel Couto Viana, Goulart Nogueira, Fernando Guedes ou António José de Brito, cujo nacionalismo, sustentava, «ou será mutilado e incompleto, ou será integral e, portanto, necessariamente, monárquico». O papel do periódico ultrapassará um tanto o domínio das ideias, pois desencadeará sérios confrontos físicos e miseráveis denúncias à Pide de universitários comunistas de Coimbra, como Salgado Zenha, que será acusado de «traição à pátria» e encarcerado. Enfim, não eram só ideais que estavam em causa, urgia aceitar ou recusar a bota de Salazar. A direita radical acomodava-se, mas havia quem achasse ter razão para se revoltar…
Riccardo Marchi, «Folhas Ultras – As ideias da direita radical portuguesa (1939-1950)», Imprensa de Ciências Sociais, 2009, 254 páginas