«Frei José Maria» e a revolução cristã
António Rego Chaves
Jaime Cortesão (1884-1960), esse «príncipe (republicano) da sonhada Renascença», foi «porventura o maior historiador português» do século XX – segundo Jacinto Baptista, em cuja opinião o fundador da «Seara Nova» se revelou «ademais e acima de tudo, cidadão exemplar e herói do civismo». Demitido do cargo de Director da Biblioteca Nacional em 1927 e forçado ao exílio em França e no Brasil, suportou três décadas longe da pátria, não sem ter sido, de passagem por Portugal, em 1940,encarcerado no Aljube e em Peniche. Regressado de vez em 1957, viria a participar na campanha do general Humberto Delgado como candidato à Presidência da República.
Neste livro, contra Gaspar Simões e Câmara Reis, e segundo Miguel Real em ensaio já recenseado neste espaço, «defende a tese da unidade estrutural entre o jovem Eça socialista (…) e o último Eça, igualmente socialista, mas agora um socialista de tipo cristão, ou seja, um socialista franciscano».
Para Cortesão, foi «S. Cristóvão» (…) «a obra em que Eça de Queiroz, nos seus últimos anos, deu expressão às suas mais ansiosas cogitações sobre o problema social», «livro póstumo que só doze anos após a morte do escritor saiu a lume». O historiador sustenta, apoiado em testemunhos escritos e orais, que «Eça foi um deísta, à maneira dos filósofos franceses do século XVIII, admitindo a existência de Deus, porventura a imortalidade da alma, e derivando dessa fé elementar uma regra de dever, mas rejeitando inteiramente os dogmas revelados». Por outro lado, «mau grado o tradicionalismo estagnado da aristocracia portuguesa, cujo estilo de vida partilhou, conseguiu vencer essa inibição de classe e conservar a grandeza e liberdade de consciência, nas horas essenciais da criação».
Observa o autor: «Eça, como Antero, Oliveira Martins, Ramalho, Teófilo e Junqueiro (…) nascem para as letras sob o signo do universalismo, cujas ideias beberam na França, em Proudhon ou Comte; na Alemanha, em Hegel ou Marx; na Inglaterra, em Darwin ou Spencer. Daí lhes vem um estado de consciência comum a todos: a noção do contraste entre o mundo civilizado e a pequena pátria degradada por três séculos de decadência. Por isso começam todos por uma fase tremendamente destrutiva.» Contudo, com o Ultimato inglês, em 1890, «todos reagem, clara, expressa e violentamente, como portugueses, e, mais ou menos, buscam por diferentes formas a tradição nacional, para melhor se entenderem a si próprios e interpretarem a vida pela arte.» (…) «Cada um destes homens, Eça como os demais, se explica tanto por si como pelos outros.»
Daí «o esforço para extrair da consciência do passado as premissas do futuro, transformando-as numa regra de vida», esforço esse especialmente nítido em «S. Cristóvão». Dizia Eça, entrando, à sua maneira, no debate europeu entre positivismo e idealismo: «Nunca mais ninguém, é certo, tendo fixo sobre si o olho rutilante e irónico da ciência, ousará acreditar que das feridas que o cilício abria sobre o corpo de S. Francisco, brotavam rosas de divina fragrância. Mas também, nunca mais ninguém, com medo da ciência, e das representações da fisiologia, duvidará em ir respirar, pela imaginação, e se for possível colher, as rosas brotadas do sangue do santo incomparável.» Assim se manifestava nele, pois, o culto da espiritualidade.
Culto da espiritualidade que não o impediu de «manter o acordo entre a consciência, moldada pelas ideias socialistas, e a sua expressão literária.» Mais: o nosso agente consular em Havana «assumiu com zelo e vigor inexcedíveis a posição natural de defensor dos trabalhadores agrícolas chineses, baixamente oprimidos por uma administração retrógrada e um patronato explorador até à mais vil inumanidade». Por outro lado, «denuncia, com a admirável veemência de um protesto, que lhe brota da consciência sublevada, as hipocrisias, as violências, as inumanidades do capitalismo britânico. O mesmo ao comentar as perseguições aos judeus na Alemanha.» Não poupou, também, «os algozes, os ‘land-lords’ ingleses que esmagavam e sugavam a população rural [os servos da gleba] da Irlanda» de finais do século XIX.
Referindo-se às greves dos trabalhadores das docas de Inglaterra como uma luta do feudalismo capitalista e das plebes operárias», ou apoiando com a sua «atenção comovida» o movimento que então se desenhava em França para garantir a todos os trabalhadores um dia inteiro de descanso semanal, ou apontando o dedo ao contraste ente famintos e ricos escandalosamente visível em Paris, perfila-se como representante de um socialismo espiritualista ou cristão, que nada tem a ver com as Igrejas que considera «esquecidas dos pobres», apesar de se reclamarem da lição de Jesus. Chega a visar directamente o Papa Leão XIII, ao atacar a famosa encíclica «Rerum Novarum», veículo de «uma doutrina que desmente toda a sublime experiência de vida evangélica».
«S. Cristóvão», ao pretender realizar a síntese entre Tradição e Revolução, constitui uma apologia do sacerdócio livre e da santidade laica, recuperando um cristianismo primitivo e fraterno, de amor e humildade, anterior ao Dogma e à Igreja, supra-confessional e anti-sacerdotal, que arranca dos Actos dos Apóstolos, passa por Francisco de Assis e Teresa d’Ávila e conduz ao «milagre» da libertação dos oprimidos e da redenção do sofrimento social, mesmo quando não dispensa as «jacqueries», ou seja, as revoltas dos camponeses [ou do proletariado industrial] contra a agressão dos senhores feudais e da hierarquia eclesiástica [ou do capitalismo]. Mas a revolução por que orava «Frei José Maria», a interior, a das consciências, a definitiva, só a esperava para mais tarde, «redimindo pela humildade e o amor o pecado original do orgulho vindicativo» …
Jaime Cortesão, «Eça de Queiroz e a Questão Social», Seara Nova, 1949, 217 páginas