O Céu mais a Terra
António Rego Chaves
Se La Rochefoucauld, nas «Máximas», se fixa na Terra e dispensa o Céu, Pascal (1623-1662), nos «Pensamentos», olha a Terra a partir do Céu. La Rochefoucauld descreve, Pascal prescreve. Um observa, o outro legisla. Um não parece nada interessado em transformar as condutas; o outro não parece ter outro objectivo. O primeiro é relativamente dogmático, pois julga ter descoberto as motivações dos homens; o outro é supremamente dogmático, pois julga ter descoberto as motivações dos homens e de Deus.
«Há só três espécies de pessoas: umas que servem Deus, tendo-o encontrado; outras que se aplicam a procurá-lo, não o tendo encontrado; outras que vivem sem o procurar nem o haver encontrado. As primeiras são razoáveis e felizes; as últimas são loucas e infelizes; as do meio são infelizes e razoáveis.» Pascal dixit. Salta à vista a arrogância do iluminado, que se julga inspirado pela divindade. O filósofo deixou de procurar a sua verdade, já «encontrou» a verdade absoluta. Transformou-se em fanático.
«Corrige» o pirrónico Montaigne, «emenda» o dogmático Descartes, seu irmão em certezas. Porque ele, Pascal, é quem «sabe» tudo. Ao contrário de Sócrates, «sabe que tudo sabe». Daí que venha ensinar-nos o que está certo e o que está errado, o que agrada e o que não agrada a Deus, o Bem e Mal. Bom missionário, quer converter-nos ao catolicismo. Não ao catolicismo dos jesuítas, não ao catolicismo dos jansenistas, mas ao «seu» catolicismo.
Pascal é também um cientista, por isso aponta com autoridade os limites da razão: que nos ensina o espírito geométrico acerca dos motivos por que vivemos e morremos, acerca das nossas vidas, acerca do vazio interior? É a hora de arvorar algum cepticismo: «Não vemos nada de justo ou de injusto que não mude de qualidade ao mudar de clima. Três graus de elevação do pólo deitam por terra toda a jurisprudência. Um meridiano decide da verdade. Em poucos anos de posse, as leis fundamentais mudam. O direito tem as suas épocas. A entrada de Saturno em Leão indica-nos a origem de determinado crime. Singular justiça que um rio delimita! Verdade para cá dos Pirenéus, erro para lá.» (….) «O furto, o incesto, o assassínio dos filhos e dos pais, tudo isso teve o seu lugar entre as acções virtuosas. Haverá porventura coisa mais singular do que ter um homem o direito de matar porque vive do outro lado da água e o seu príncipe está em querela com o meu, embora eu nenhuma querela tenha com ele?» Mas este foi apenas um cepticismo de carácter táctico, de evangelizador, porque Pascal «sabe» que só existe uma verdadeira justiça: a que Agostinho referiu n’ «A Cidade de Deus», sendo possibilitada pela fé e encontrando-se plasmada na Bíblia.
Se a razão, por si só, é incompetente para elaborar uma moral, é porque, depois da queda de Adão, «todos os homens se odeiam naturalmente uns aos outros. Aproveitaram-se como puderam da concupiscência [desejo exagerado dos bens terrenos e da carne] para a fazer servir ao bem público; mas é apenas fingir e uma falsa imagem da caridade; porque, no fundo, não passa de ódio.» O pessimismo é aqui evidente, estriba-se no chamado «pecado original». Assim sendo, a luta que se viria a travar a partir de 1789 pela liberdade, pela igualdade e pela fraternidade nada traria de novo: tudo poderia ser explicado pelo ódio e pela concupiscência. Sem os Evangelhos, não haveria oportunidade de passar da teoria à prática da solidariedade.
Palavras de Pascal: «Estabeleceram-se e extraíram-se da concupiscência regras admiráveis da conduta, da moral e da justiça. Mas, no íntimo, este vil fundo do homem, este ‘figmentum malum’ [composição má, tendência para o mal] apenas está encoberto: não está extirpado.» Philippe Sellier sobre a nossa «cidade sem Deus»: «Em política, o verdadeiro homem de Estado é aquele que consegue instaurar um equilíbrio de interesses, suscitar o que se pode chamar a ‘ordem da concupiscência’. Mais do que recorrer simplesmente à força, os grandes políticos refreiam as cobiças usando toda a espécie de meios: prebendas, subornos, condecorações, participação no poder… O perfeito homem de Estado, extraordinário alquimista, vai extrair do confronto entre os ‘eus’ totalitários o maior dos bens: a paz.»
Explicações? «O ‘eu’ é odioso», lê-se no «Pensamentos». «O ‘eu’ tem duas qualidades: é injusto em si, pois se faz o centro de tudo; é incómodo aos outros, pois os quer subjugar. Porque cada ‘eu’ é inimigo e queria ser tirano de todos os outros. Vós retirais-lhe a incomodidade, mas não a injustiça; e, assim, não o tornais digno de ser amado por aqueles que odeiam a injustiça. Só o tornais digno de ser amado pelos injustos, que já não encontram aí o seu inimigo, e assim continuais injustos e só podeis agradar aos injustos.»
E quanto a Deus? «Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, uma vez que, não tendo partes nem limites, não tem qualquer comparação connosco. Somos, portanto, incapazes de saber se ele é e se existe.» Anota Philippe Sellier que, no teólogo Pascal, a teoria moral repousa na teologia agostiniana da «queda» e da «graça». Ora, segundo o Bispo de Hipona, o homem foi criado «santo, inocente, perfeito, cheio de luz e inteligência». Depois da «queda» é que tudo mudou – a razão tornou-se impotente para conhecer Deus, só «o coração», tocado pela «graça», pôde apreender a «tão divina moral» dos Evangelhos. Mas não é tocado pela «graça» quem quer: só os eleitos pela divindade, mediatizada por Cristo, beneficiam dela. Quanto aos outros, resta-lhes a célebre «aposta». Se as probabilidades de Deus existir e de não existir são idênticas, apostemos: afastados os «iluminados», que não têm dúvidas, e se não podemos ser cristãos, porque não cremos, apostemos, então, em Deus. Seguindo a moral dos Evangelhos, amando o «Deus escondido» e o próximo, talvez juntemos a Terra ao Céu.
Blaise Pascal, «Pensamentos», Europa-América, 1998, 389 páginas