António Rego Chaves
Iluminismo, que é «isso» hoje para nós? Socorramo-nos para já do respectivo volume da «História do Pensamento Filosófico Português», dirigida por Pedro Calafate, com o título «As Luzes». Nomes estrangeiros mais citados: Francis Bacon, Descartes, António Genovesi, John Locke, Isaac Newton. Mas vamos à raiz do «mal». Que destaque merecem alguns dos maiores do século XVIII, como Voltaire, Rousseau, Diderot, Condorcet? Voltaire tem direito a referências em dez páginas, Rousseau em doze, Diderot queda-se pelas quatro, Condorcet, o cérebro que deu forma à ideia de Progresso, vale ainda menos: zero, nem o seu nome. Choca o lusitano esquecimento do autor do «Quadro dos Progressos do Espírito Humano» (titulo português, inserido na saudosa Biblioteca Cosmos, com uma excelente introdução de Vitorino Magalhães Godinho, no já longínquo ano de 1946). Choca porque, ainda recorrendo à nossa rara mas por vezes brilhante baixela ensaística do período salazarista, não podemos deixar de sublinhar o que em 1939 escreveu Vasco de Magalhães-Vilhena, em «Progresso, história breve de uma ideia», depois de recordar que o marquês conotado pelos jacobinos com os girondinos advogou a destruição da desigualdade entre as nações, os progressos da igualdade num mesmo povo e o aperfeiçoamento real do homem: «a mensagem de Condorcet é a grande mensagem do século» das Luzes.
Adiante, cumprido que foi o grato dever de inserir no contexto dos estudiosos do Iluminismo os nomes de dois portugueses da estirpe cívica e intelectual de Vitorino Magalhães Godinho e de Vasco de Magalhães-Vilhena. Este número de «Le Magazine Littéraire» presta um óptimo serviço a todos os que hoje não se resignam a confinar a importância do século XVIII ao 250.º aniversário do nascimento de Mozart, ainda que Jean Starobinski esteja nele bem presente para não nos deixar esquecer o genial criador de óperas como «Don Giovanni», «A Flauta Mágica» ou «O Rapto no Serralho». Quanto ao eminente linguista Tzvetan Todorov, comissário da exposição a inaugurar em Março próximo na Biblioteca Nacional de França, esclarece: «O ponto central do pensamento das Luzes é a crítica das tutelas exteriores e a afirmação da autonomia. Um movimento de emancipação, em primeiro lugar, que implica que compete à pessoa tomar nas mãos o seu destino, político ou individual. Já não é a tradição, são os homens que devem determinar a lei e assumi-la: o povo é soberano.»
Michel Delon, especialista do Iluminismo, evoca Voltaire e, com ele, o famoso «caso Calas», que pressagiou a lendária intervenção de Zola no celebérrimo «caso Dreyfus». O «crime calvinista» de que teria sido vítima um jovem protestante que projectaria converter-se ao catolicismo traduzir-se-á pela condenação à pena capital do pretenso parricida Jean Calas, executado em 1762. Voltaire intervém, ainda que tarde de mais. No entanto, toda a Europa política e intelectual será agitada, porque ficará claramente demonstrado que o cerne da questão não é outro senão a intolerância. Estribado na debilidade das provas apresentadas contra Jean Calas, Voltaire lutará durante três anos até conseguir a reabilitação do condenado e de sua família. A lição estava à vista, os filósofos setecentistas já não se contentavam com o ofício de pensar e de escrever o que pensavam, queriam agir e transformar em realidades os seus generosos ideais.
Newton, contra Descartes, revolucionara a ciência na passagem do século XVII para o século XVIII, mas no mundo moral não fora fácil encontrar um seu homólogo. Tal glória caberia não tanto a Montesquieu como a Adam Smith, com o seu «Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações» (1776). Porém, como sintetiza Didier Masseau, as forças tradicionalistas não desarmavam, atacando os movimentos deístas e ateus, empenhados em repensar o mundo e as relações sociais, em pôr em causa a legitimidade do poder político e em examinar a moral colectiva e individual, diminuindo ou mesmo recusando o papel do cristianismo. O mesmo ensaísta aponta o dedo aos «anti-Luzes», isto é, a todos os que consideravam que as autoridades legítimas, fossem da Igreja ou do poder civil, deveriam conservar o monopólio do acesso à verdade, e aos que visavam opor-se ao triunfo do espírito crítico e ao relativismo generalizado que engendraria uma razão individual capaz de romper todos os laços com uma ancestral tradição obscurantista. A «intolerante tolerância» do «Dicionário Filosófico» de Voltaire é rejeitada pelos que se apegam ao passado, recusando «a emancipação do espírito humano, acusada de conduzir à depravação do coração». Ao contrário de Hobbes e de Locke, que fundamentam a autoridade política num contrato entre os homens e o poder do Estado, os adversários dos iluministas consideram que a divindade representa o fundamento original e exclusivo da autoridade política. Joseph de Maistre atacará sem rodeios a democracia, recusando a limitação da «sagrada» e absoluta soberania do rei por qualquer poder representativo.
Mas os intelectuais pretenderão aliar o ateísmo à virtude, impondo, em contraste com a imagem do libertino, a do cidadão-filósofo. O Diderot de «Les Bijoux Indiscrets», o Casanova de «História da Minha Vida» ou o Sade de «A Filosofia na Alcova» não farão esquecer a intensa acção cívica de Voltaire, de Rousseau, de Beaumarchais.
«Raciocinar é já não acreditar.» Ora Turgot e Condorcet não fazem mesmo outra coisa e defendem, diz Tocqueville, «a doutrina da perfectibilidade contínua e indefinida do Homem».A ideia de Progresso suplanta a de Providência, Santo Agostinho, Pascal e Bossuet parecem silenciados por Pierre Bayle, Montesquieu, Diderot, Voltaire ou d’Alembert, tal como Descartes por Bacon e Locke. Laicizar as ciências da sociedade foi a principal tarefa a que se consagraram os redactores da Enciclopédia, dirigida por Diderot e d’Alembert, com a colaboração de Voltaire, Rousseau, Holbach, Quesnay, Turgot. A revolução cultural assim iniciada em 1750, sob Luís XV, preparava já todas as cabeças para a grande tormenta de 1789…
Le Magazine Littéraire, «Le Siècle des Lumières», Fevereiro de 2006, 98 páginas