António Rego Chaves
A minha geração não ignorou Roger Garaudy, sobretudo o das «Perspectivas do Homem» (1959), o de «Deus Morreu – Estudo sobre Hegel» (1962), o do levantamento da absurda «excomunhão» que abrangia Picasso, Saint-John Perse e Kafka («Um Realismo sem Fronteiras», 1963), o da reaproximação ao cristianismo («Do Anátema ao Diálogo», 1965), o do «Marxismo do Século XX» (1966), o de «O Problema Chinês» (1967), o de «A Grande Viragem do Socialismo» (1969), o de «Toda a Verdade» (1970) sobre a sua expulsão do PCF. Lemo-lo à sorrelfa, muitas vezes discretamente adquirido na então minúscula Livraria Barata. Depois, passado o 25 de Abril, quase todos os que antes «devoravam» os seus ensaios deixaram de os procurar, talvez desconfiados do percurso do pensador, que muitos se apressaram a classificar como um «traidor» à causa do proletariado, como se esta só pudesse ser bem representada pelos partidos comunistas alinhados com a «ortodoxia» moscovita.
Foi pena. Foi pena porque este livro, tese de doutoramento de José Rui Gaia da Costa Pinto (JCP), sacerdote jesuíta que é também professor de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, escapando por completo à arrogância dos crentes que se julgam detentores da verdade absoluta, ajuda-nos a compreender, como poucos, de uma forma que me atreveria a classificar de empática, a evolução do pensamento do autor de «Viagem Solitária no meu Século» (1989). Constitui, por isso, uma exemplar lição de humildade intelectual, de respeito pelas ideias e crenças dos outros e de ecumenismo.
Considerando que a grande questão garaudiniana é «a urgência irrecusável da emergência da subjectividade humana na construção do oitavo dia da criação», JCP procura captar o cerne do pensamento «deste homem exemplarmente honesto», «lutador incansável de luz e verdade». Salienta: «A inquietação espiritual, a capacidade criativa, a constante preocupação dos fenómenos novos e de novos caminhos, a profunda formação cultural e filosófica, aliada a um arraigado pendor para a acção, fazem com que seja uma personalidade rara, ou única.»
Esboçado o itinerário ideológico de Roger Garaudy (estalinismo, repensamento do marxismo, confronto com outras correntes filosóficas e ataque frontal ao «anti-humanismo teórico» de Louis Althusser, ruptura com o PCF, defesa do «novo bloco histórico» e do «socialismo de autogestão e de autogoverno», «profetismo» assente na emergência da subjectividade e no «diálogo das civilizações», adesão ao islamismo), o autor enumera aqueles que foram, além de Karl Marx, os seus grandes mestres ao longo de uma extensa vida de reflexão: o católico Maurice Blondel com a sua «filosofia da acção», o epistemólogo Gaston Bachelard, o teólogo protestante Karl Barth, Kant e o seu idealismo transcendental, Fichte com a «filosofia do acto criador», o Kierkegaard de «Temor e Tremor». Protestante na altura em que adere ao PCF (1933), dirá que Maurice Thorez «durante um quarto de século deu rosto» à sua «esperança comunista», não regateando aplausos à mão por ele estendida desde 1937 aos cristãos. Em 1956, com a denúncia do estalinismo no XX Congresso do PCUS, desperta do seu «sono dogmático», pergunta-se a si próprio se a sua vida de militante e dirigente comunista teve algum sentido. E conclui: «Tornava-se necessário aprender as leis do diálogo, da assimilação crítica daquilo que os não-marxistas traziam à consciência comum.» Estabelece pontes para o cristianismo (privilegiando Teilhard de Chardin, D. Hélder Câmara e Karl Rahner), para o existencialismo sartriano, para o idealismo alemão, para o estruturalismo, para as culturas orientais. A revolta estudantil em França e a invasão da Checoslováquia (Maio e Agosto de 1968) avivam os seus «desvios ideológicos» que, em 1970, o conduzirão à expulsão do PCF. Doze anos passados, ainda que sem renegar da mensagem cristã, pronunciará a profissão de fé muçulmana: «Deus é o único Deus e Maomé o seu Profeta.»
A preocupação de Garaudy com o catolicismo após o Concílio Vaticano II, o impacte da encíclica «Pacem in Terris» («substituição do espírito de cruzada pelo espírito de diálogo») e o contacto com a obra de grandes teólogos nunca cessarão de se evidenciar nos seus livros, privilegiando a «tradição apocalíptica» ou corrente judaico-cristã e repudiando a «tradição constantiniana» ou corrente heleno-cristã. «O marxismo empobrecer-se-ia se São Paulo e Santo Agostinho, se Santa Teresa d’Ávila, Pascal e Claudel, se o sentido cristão da transcendência e do amor lhe fossem estranhos». Dissocia, no entanto, fé e religião. «Impõe-se cada vez mais, afirma, a distinção entre a religião como ideologia e concepção do mundo, como forma cultural assumida pela fé em tal ou tal época do desenvolvimento histórico, e a fé.» Faz suas as palavras de Paul Ricoeur: «A religião é a alienação da fé.» Concretiza: «Esperança cristã e esperança marxista têm necessidade uma da outra para não se tornarem alienação.» (…) «A esperança cristã será alienação cada vez que o cristão pensa que para se voltar para Deus deve virar as costas ao mundo, que pode chegar ao reino de Deus sem passar pela transformação da terra dos homens», (…) «a esperança marxista torna-se alienação cada vez que cede à ilusão de que mudando o sistema de propriedade ou mesmo um conjunto mais vasto de relações sociais nascerá necessariamente um homem novo». Quanto à religião muçulmana, escreveu na «Viagem Solitária no meu Século»: «Cheguei ao Islão com a Bíblia debaixo de um braço e “O Capital” de Marx no outro. Estou decidido a não abandonar nenhum destes livros.» (…) «Afirmo e grito que o Islão tem hoje necessidade de uma teologia da libertação para reencontrar, numa etapa histórica nova, a sua exigência primeira de justiça social. Tem mesmo necessidade de redescobrir, perante um Islão dos príncipes e dos ulemás, que dele fazem um “ópio do povo”, um Islão dos pobres.» Eis a prova provada de que o marxista Roger Garaudy nunca de facto mudou de rumo, mas só de comunidade…
José Rui Gaia da Costa Pinto, «A Emergência da Subjectividade em Roger Garaudy», Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa (Braga), 2003, 282 páginas