Nem a Terra, nem o Céu
António Rego Chaves
La Rochefoucauld escolheu a Terra sem o Céu, Pascal o Céu mais a Terra, La Bruyère (1645-1696) nem a Terra nem o Céu: transformou-se em «científico» caçador de essências. Tal como o grego Teofrasto (cerca de 372-288 a.C.), cujos «Caracteres» traduziu, procurara determinar a essência da dissimulação, da lisonja ou da avareza, La Bruyère consagrou boa parte da sua vida à tarefa de descobrir a essência do «coração», do cortesão ou dos «espíritos fortes». Qual taxionomista ou entomologista, importava-lhe olhar, ver, diferenciar, ordenar, classificar. Diligente «naturalista das espécies sociais», o seu laboratório – e microcosmo – foi a França de Luís XIV.
O moralista estava bem ciente da importância do trabalho levado a cabo quer por Teofrasto, quer por La Rochefoucauld, quer por Pascal. Quanto a este último, considerava que «dá a conhecer a alma, as suas paixões, os seus vícios, trata dos grandes e profundos motivos para conduzir à virtude e quer tornar o homem cristão». No que ao autor da «Máximas» se refere, relevava a sua argúcia «ao observar que o amor-próprio é no homem a causa de todas as suas fraquezas». E não poupou elogios ao discípulo de Aristóteles e seu sucessor à testa do Liceu, reconhecendo que, apesar de o seu livro «Os Caracteres» ter sido escrito «no último ano da CXV olimpíada, trezentos e catorze anos antes da era cristã», (…) «admiramo-nos porque nós próprios nos reconhecermos nele, bem como os nossos amigos, os nossos inimigos e aqueles com quem convivemos, e que essa semelhança com homens separados por tantos séculos seja tão completa». Concluía: «Na verdade, os homens nada mudaram, quer no coração, quer nas paixões; ainda são como eram então e como são vistos por Teofrasto: vaidosos, dissimulados, aduladores, interesseiros, desavergonhados, importunos, provocadores, maldizentes, quezilentos, supersticiosos.»
Sobre a sua própria obra, explicou-se La Bruyère: «Focámos mais os vícios do espírito, o recôndito do coração e todo o interior do homem do que fez Teofrasto; e pode-se dizer que, como os seus ‘Caracteres’, devido a mil coisas exteriores que fazem notar no homem, pelas suas acções, as suas palavras e as suas tentativas, ensinam qual é o seu fundo, e fazem remontar até à origem do seu desregramento, muito pelo contrário, os novos ‘Caracteres’, revelando primeiro os pensamentos, os sentimentos e os movimentos dos homens, descobrem o princípio da sua malícia e das suas fraquezas, fazem que se preveja facilmente tudo o que eles são capazes de dizer ou fazer, e que deixemos de nos espantar com milhares de acções viciosas ou frívolas de que a sua vida se encontra completamente cheia.»
Escreve Robert Pignarre: «Quanto à sua descrição dos costumes, ela actualiza os temas tradicionais da literatura satírica: o casamento, as intrigas galantes, as exigências dos traficantes de influências, os vícios do aparelho judiciário, o luxo insultuoso dos oportunistas, a pedinchice da pequena nobreza provinciana, o snobismo dos pedantes e das literatas, os eclesiásticos mundanos, os vaidosos da corte, os devotos e os impostores que os exploram, a guerra, enfim, com os seus horrores, as suas misérias, o seu absurdo, exemplo privilegiado da loucura dos homens.»
Acrescenta ainda o ensaísta: «Onde La Bruyère dá o melhor de si próprio, enquanto juiz da ordem política, é no protesto contra a injustiça, na sua afirmação segundo a qual os desafortunados são oprimidos e que cada cidadão, em consequência, deve considerar-se como responsável pelo mal social.» Na verdade, o moralista foi bem explícito, até brutal: «Há uma espécie de vergonha de ser feliz perante certas misérias.» (…) «Vêem-se animais ferozes, machos e fêmeas, espalhados pelo campo, negros, lívidos e completamente queimados pelo sol, agarrados à terra que removem com uma persistência invencível; têm uma espécie de voz articulada, e quando se levantam sobre os pés mostram uma face humana, e na verdade são homens. Retiram-se à noite para covis, onde vivem de pão negro, de água e de raízes; poupam aos outros homens o trabalho de semear, de lavrar e de colher para viver, e merecem assim que não lhes falte esse pão que semearam.» Dois séculos depois, Émile Zola não seria mais expressivo.
La Bruyère demarcou-se, nestes termos, tanto de La Rochefoucauld como de Pascal, ele que não era nem duque nem místico, mas apenas um pacato jurista que subira a pulso até ao convívio com os «Grandes». Entendeu, no entanto, que já vira o suficiente: «Se comparo o conjunto das condições dos homens mais opostos, isto, dos Grandes com o povo, este último parece-me contente com o necessário, e os outros inquietos e pobres com o supérfluo. Um homem do povo não seria capaz de fazer qualquer mal; um Grande não quer fazer nenhum bem, e é capaz de fazer grandes males. Um não se forma e não se entrega senão a coisas que são úteis; o outro junta-lhes as perniciosas. Ali mostram-se ingenuamente a grosseria e a franqueza; aqui esconde-se uma seiva maligna e corrompida, sob o verniz da delicadeza. O povo quase não tem espírito, e os Grandes nem sequer têm alma: aquele tem um bom fundo, e nada de exterior; estes não têm senão exteriores e uma simples superfície. É necessário optar? Eu não balanço: quero ser povo.»
Entre 1688 e 1696 foram vendidas nada menos do que nove edições d’«Os Caracteres». Reinava então o poderoso «Rei-Sol» – e continuaria a reinar até 1714, data da sua morte em Versailles. A Revolução protagonizada pelos bons e pelos maus burgueses franceses do século XVIII seguir-se-ia dentro de decénios, mas os trabalhadores de enxada, esses humilhados «animais ferozes, machos e fêmeas, espalhados pelo campo», tão admiravelmente retratados por La Bruyère, pouco ganhariam com ela…
La Bruyère, «Les caractères», Garnier-Flammarion, 1965, 443 páginas