António Rego Chaves
Serão os escritores pessoas melhores do que as outras? Basta folhear este «Le Magazine Littéraire», cujo «dossier» é consagrado à «maldade», para se responder pela negativa. Mas, então, serão eles piores? Também não. A diferença está em que agridem, de preferência, brandindo a arma das letras – embora não se privem de utilizar a via oral. E que nós podemos conhecê-los muitos séculos depois, como sucede com os romanos Catulo e Marcial: os seus epigramas por aí circulam, para gáudio de sádicos e masoquistas.
Diz Stéphane Audegy: «A maldade pode, na literatura, constituir uma reacção vital contra o conformismo e a estupidez; mas tornou-se, nas empresas e nos media, uma técnica mortífera.» (…) «A questão política e social da maldade deve ser colocada: o problema não é o de saber se nós nos tornámos mais maldosos, mas se as nossas condições de vida produzem, de alguma forma, mais maldade.» De facto, «as maldades induzidas pelo meio de trabalho», «a vida freneticamente concorrencial da empresa» e a «precarização física e psíquica dos trabalhadores» são hoje e desde há muito fontes de permanente criação de conflitos interpessoais. Ganha cada vez mais força a prática do «princípio da eliminação do outro». Já não basta conquistar um lugar ao sol, é preciso que o adversário fique ou seja arrastado para um lugar bem gelado. Está dito e redito, é a lei da selva.
Referindo-se àquele que considera «o mais feroz dos escritores franceses», sintetiza Laurent Nunez: «Tudo irritava Léon Bloy [1846-1917]. Os burgueses, a República, a Igreja; os seus inimigos, evidentemente, mas até os seus amigos; e mesmo a existência, essa horrorosa transmissão do útero para o sepulcro.» Considerando-se um homem superior «esmagado por uma sociedade infame», acabaria, depois de vociferar contra tudo e contra todos, por revelar publicamente o seu mistério pessoal: «A verdade bem nítida e que explode em todos os meus livros, é que não escrevo senão para Deus.» (…) Ou, ainda, estoutra bravata: «O meu domicílio é o Absoluto.»
Saint-Simon, nas suas quilométricas «Memórias», que se estendem desde 1691 a 1723 e preenchem nada mais, nada menos do que oito volumes da prestigiada Bibliothèque de La Pléiade, responde à questão de saber se ele, autor, tem o direito de dizer tudo o que sabe. Eis as suas palavras: «Somos obrigados a ignorar os Guise, os reis e a corte do seu tempo, com medo de dar a conhecer os seus horrores e os seus crimes?» Como riposta com um rotundo «não», deparamos com um desfile de perfídias, traições, sodomias, adultérios. «Foi verdadeiro, chamam-lhe maldoso», comentava Stendhal.
Rousseau considerava os homens de letras os seres mais vis que existem. Na verdade, sofreu, como poucos, o efeito da maldade, porventura umas vezes real e outras imaginada, dos seus contemporâneos. E que gente temível, tais contemporâneos! Voltaire, Hume, Diderot, d’Alembert, Grimm, d’Holbach, Marmontel… Porquê? Porque, explica-nos nos seus «Diálogos» – a ler depois de «As Confissões» e de «Os Devaneios do Caminhante Solitário» –, quando o amor de si se transforma em amor-próprio, isto é, em sentimento que aspira ao reconhecimento dos outros, reinam a competição, a inveja, o ódio. O homem torna-se lobo do homem, «vale tudo» para suplantar o «inimigo», para o ver derrotado, para ser o primeiro. Por isso Rousseau escolhe a misantropia e afirma que só o mau procura a sociedade, porque a sua própria companhia lhe é intolerável, ao passo que apenas o homem bom é capaz de desfrutar dos prazeres da solidão. Os homens de letras, com suas permanentes rivalidades, são os que mais se odeiam. «Cada um odeia tudo o que não é ele, mais do que se ama a si próprio. Ocupa-se demasiadamente dos outros para saber ocupar-se de si.»
No século XIX, relevam Anne Boquel e Étienne Kern, «a perfídia está no coração da sociabilidade literária em Paris». Pierre Louÿs, então ainda muito jovem, exclama, depois de ter estado presente num banquete literário oferecido em 1890 por Mallarmé, Rodenbach, Mendès e Lorrain em honra do parnasiano Léon Dierx: «Que raça desprezível! Não pararam de dizer mal uns dos outros!» Golpes baixos, atitudes mesquinhas e traições, eis algumas das práticas desde sempre usadas na República das letras. Victor Hugo contra Sainte-Beuve, Zola contra os signatários do «Manifesto dos Cinco», Flaubert contra a escola de Lamartine, Anatole France contra Lecomte de Lisle. Ódios e ressentimentos não escasseiam, nesta impiedosa «struggle for life», nesta busca da celebridade, nesta incansável procura de mais compradores para a obra editada, tantas vezes com uma frase pérfida em punho. Nos salões literários, nos restaurantes, nos cafés, reina o ódio. Victor Hugo «dixit», não há «verdadeiros ódios senão os ódios literários. Os ódios políticos não são nada.» Chateaubriand odeia Lamartine, Balzac odeia Eugène de Sue, Goncourt odeia Zola. Eram demasiados galos na mesma capoeira – e todos disputando uma mesma galinha, a (vã) Glória.
Estamos a chegar ao século XX, mesmo ao século XXI? Nem por isso. «Le Magazine Littéraire», depois de abrir espaço para a obra de alguns a quem chama «monstros ilustres» (Shakespeare, Barbey d’Aurevilly, Conrad, Sartre), transcreve um texto do poeta-boxeur Arthur Cravan contra Gide, outro de Céline contra o autor de «Retrato de um Anti-Semita»… e fica-se por aqui. Melhor: termina com uma escolha de citações de «Le Grand Livre de la Méchanteté», uma antologia assinada por Pierre Drachline, depois de «saltar» 18 páginas e quando já tínhamos dado por terminada a leitura do «dossier». Lá estão, lado a lado, em duas ou três linhas cada um, muitos «méchants» do século XX, franceses e não-franceses. Entre eles – aleluia! – um português, António Lobo Antunes, com uma frase que traduzo para a nossa língua: «Na minha família, os animais domésticos não eram nem cães, nem gatos, nem aves; na minha família, os animais domésticos eram os pobres.» «Méchant», nada mais do que «méchant», este Lobo Antunes?
«Le Magazine Littéraire», Julho-Agosto 2009, «La méchanceté», 106 páginas