Um serviço cívico
António Rego Chaves
A expressão «serviço cívico» foi-se abastardando depois de 1975 – e é pena. Pena, sobretudo, que poucos se atribuam a missão de o praticar. Não é o caso das dezenas de autores deste breve «Dicionário das Crises e das Alternativas», posto à venda pela quase simbólica quantia de 3 (três) euros.
Boaventura Sousa Santos, um dos raros intelectuais cuja intervenção cívica podemos hoje saudar, prefacia: «Os investigadores do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra prepararam este Dicionário a pensar nas cidadãs e cidadãos comuns que, num momento difícil da sociedade portuguesa, são todos os dias bombardeados com notícias cujo alcance nem sempre entendem, mas que sabem trazerem mais novidades para as suas vidas. As notícias vêm recheadas de palavras, conceitos, eventos, números, acrónimos que não são do conhecimento comum e que, noutra altura, seriam ignorados e tidos como falta de sensibilidade dos redactores ante leitores, ouvintes ou espectadores que têm mais que fazer do que estudar notícias ou perder tempo a estudar comentadores.»
Adianta a seguir, preto no branco: «Agora, porém, é diferente, uma vez que o que se noticia hoje pode transformar-se amanhã em perda de salário ou de pensão, em aumento do preço dos medicamentos ou dos transportes, em ter de tirar o filho das actividades extraescolares ou de cortar na alimentação. As notícias de hoje são o dia anterior de um quotidiano cada vez mais difícil, de uma vida familiar cada vez mais penosa, de horizontes e expectativas de vida cada vez mais incertos e até ameaçadores. As notícias são hoje a expressão da nossa impotência perante o futuro e, mesmo quando parecem tomar o nosso partido, suscitar a nossa revolta, apontar alternativas, fazem-no de um maneira pouco convincente ou pouco clara.»
Conclui o prestigiado director do CES: «O Dicionário que ora vos apresentamos visa contribuir para aumentar a capacidade de controlo das cidadãs e dos cidadãos sobre o que lêem, ouvem ou vêem, entendendo o que é dito e o que fica por dizer, abrindo espaço para pensarem soluções alternativas para os seus problemas, isto é, para os problemas dos cidadãos e não para os problemas dos mercados, que parecem ser agora as únicas entidades com direito à estabilidade e à esperança.»
Seguem-se 222 entradas, desde «25 de Abril» a «Wikipédia», passando por «Austeridade», «Banca», «Crise», «Desemprego», «Especulação», «Flexibilidade»», «Globalização, «Horário de trabalho», «Indignados», «Justiça social», «Liberdade», «Mercadorização», «Neoconservador», «OIT», «Precariedade», «Qualidade de vida urbana», «Resistência», «Serviço Nacional de Saúde», «Taxa Tobin», «UE» ou «Voluntariado».
Com a devida vénia, aqui transcrevemos algumas das observações muito certeiras dos prestadores deste oportuno e meritório serviço cívico:
Alternativa – «Na recusa do sistema económico que governa o presente, a busca de alternativas convoca as imaginações forjadas a partir dos muitos presentes silenciados.»
Capitalismo – «A questão não é tanto a de saber se o capitalismo sobreviverá. É mais a de saber se sobreviveremos ao capitalismo.»
Cidadania – «O Estado protector deu lugar ao Estado indiferente, se não ameaçador, ele próprio refém dos mercados. Hoje, como têm demonstrado os vários movimentos de rua, dos ocupas aos indignados, a cidadania é a indignação activa, que continua a exigir a actualização dos direitos.»
Classe média – «A classe média portuguesa cresceu à sombra do Estado social. E, tal como ele, encontra-se, hoje, à beira da ruína. O resultado pode ser a ‘implosão’ ou ‘explosão’, levando alguns dos seus novos segmentos (em particular os mais jovens, saídos das universidades) a engrossar a contestação e os novos movimentos de ‘indignados’».
Contratação colectiva – «Em nome da crise e da inevitabilidade das políticas de austeridade é posto em causa o direito à contratação colectiva.»
Défice (orçamental) – «O discurso dominante tem servido sobretudo como arma ideológica no combate às funções sociais do Estado. Um pensamento alternativo sobre a crise deve afirmar que os défices com que a economia e a sociedade portuguesa se confrontam são diversos – orçamentais, externos e sociais.»
Depressão – «Sabe-se que em Portugal a subida de um por cento no desemprego está associada a um aumento de 4,4 por cento de suicídios. Por cada suicídio existem pelo menos cem casos adicionais de depressão.»
Emigração – «Nos primeiros anos do novo milénio, intensificaram-se os fluxos de saída dos portugueses (actualmente entre 70 mil e 100 mil por ano).»
Fascismo social - «Caracteriza-se pela crise do contrato social, ou seja, pela ideia de que noções como as de igualdade, justiça, solidariedade e de universalidade deixam de ter valor e que a sociedade como tal não existe mas, sim, simples indivíduos e grupos sociais em prossecução dos seus interesses.»
Geração à rasca - «Marcou uma nova estética de protesto (…) de que é exemplo ‘inevitável é a tua tia’, acerca das medidas de austeridade e do pagamento da dívida portuguesa.»
Impostos – «Nas últimas décadas tem-se verificado uma tendência para tributar mais intensamente os rendimentos do trabalho do que os do capital, com base na justificação da maior mobilidade (leia-se ‘capacidade para fugir’) deste último.»
Neoliberalismo – «Ancoradas na ideia de que a justiça social não passa de inveja generalizada, as regras económicas neoliberais favorecem a concentração de recursos no topo da pirâmide social.»
Utopia – «Qualquer ideia inovadora é sempre utópica antes de se transformar em realidade. Porque muitos dos nossos sonhos foram reduzidos ao que existe, e o que existe é muitas vezes um pesadelo, ser utópico é a maneira mais consistente de ser realista no início do século XXI.»
Centro de Estados Sociais, «Dicionário das Crises e das Alternativas», Almedina/CES, 2012, 218 páginas