António Rego Chaves
Eduardo Lourenço é quase unanimemente reconhecido como um dos intelectuais mais influentes na vida cultural portuguesa. Mas o prestígio do ensaísta vai mais longe: a tendência actual é para tomar como definitivos todos os seus juízos, como se cada um deles determinasse a impossibilidade de contradição. Estamos certos de que esta não será uma atitude grata ao notabilíssimo ensaísta, persistente «heterodoxo» e inteligente inimigo de todas as infalibilidades. Dito isto, podemos desde já garantir que «Antero ou a Noite Intacta» abarca um conjunto de reflexões que cremos insubstituível para o entendimento do poeta dos «Sonetos». Quer isto dizer que conterá a verdade última acerca do homem e da obra? Decerto que não. Significa apenas que os textos em causa não podem ser ignorados por quem quiser ultrapassar os erróneos lugares-comuns que visam explicar-nos o suicídio de Antero em função das brumas dos Açores, da morte da mãe ou da nevrose depressiva. A questão é outra – e bem mais funda: é ontológica.
Que há de mais importante aqui? A nosso ver, a analítica existencial. Não se foca a psicologia do escritor, do militante político ou do pensador, mas um «antiquado» ser eticamente intransigente, porque se rege por princípios inegociáveis, «alguém de um outro tempo ou de um outro mundo», tomado por uma indestrutível «inquietude metafísica», por um indisfarçável «desajustamento à existência no seu todo». Dir-se-ia que, pela angústia de viver, não estamos longe do sentir de um Raul Brandão ou de um Manuel Laranjeira – sentir que nada tem de doentio, sendo corolário da profundidade espiritual própria de alguns dos mais respeitáveis representantes da espécie humana.
Eduardo Lourenço debruça-se, com extrema argúcia, sobre a «ruptura que teve lugar no coração e no espírito de um só homem que tomou à letra, caso único entre nós, ‘a morte de Deus’ que era a da revelação da nossa vida sem mais horizonte que uma Noite intacta de onde a inaudível voz de Deus nos tinha libertado.» Daí uma «solidão cultural sem exemplo», «uma solidão ontológica e moral» – apesar da presença dos seus bons amigos da Geração de 70, sem dúvida brilhantes literatos, mas sem fôlego para o acompanhar no seu horror à futilidade metafísica, ao assumir que estaria sem remédio condenado a viver num mundo para o qual não encontraria sentido, nem por força da sua obra literária, nem ao lutar pelo socialismo, nem amando e sendo amado.
Acresce que vivia num país chamado Portugal – para ele «a única nação na Europa realmente velha e caduca» –, não sabendo viver nele mas incapaz de se decidir a viver fora dele: desesperavam-no a imbecilidade da classe média, o obscurantismo católico, a boçalidade do espaço cultural, as obscenas desigualdades sociais, a esterilidade do formalismo parlamentar, a mesquinhez da «política politiqueira». Será, como um Nietzsche, como um Artaud, como um Van Gogh, um «suicidado da sociedade».
Escreve Eduardo Lourenço que «a interpretação correcta do seu suicídio importa mais do que tudo o resto numa leitura adequada da sua obra e do seu destino.» E põe o dedo na ferida: um «desenraizado» português do século XIX cujos coração e pensamento exigiam a conciliação entre Cristo e Proudhon estava quase com toda a certeza condenado ao suicídio. Perdera a fé da sua infância, mas não se conformara com «a morte de Deus»; quanto a Proudhon – era «apenas» Proudhon, um utopista social, um místico profano. Neste plano, Antero pouco ou nada tem a ver com Eça ou Oliveira Martins – cada um deles se acomodará à sua maneira ao «país real» onde habita e banirá do horizonte a tragédia intelectual vivida na carne pelo poeta; nenhum atingirá o cerne do pensamento de Schopenhauer – e o suicídio; ambos preferirão a quase tranquilizadora luz solar das «Odes Modernas» ao «silêncio e escuridão», às trevas, ao negrume dos «Sonetos». Nem o dandismo de Eça nem as mundanas fraquezas de Oliveira Martins os auxiliavam a penetrar no deserto interior do sentimento trágico da vida do «primeiro escritor de ideias em Portugal», poeta metafísico que, sem a menor vocação para exercícios lúdicos, vivia na obsessão de pensar o que sentia e de sentir o que pensava. A «Santo Antero» apenas importa uma «verdade visceral», aquela que o faz falar de «Morte libertadora», «irmã coeterna» da sua alma, aquela que o faz exclamar, num infindo grito de desespero, «que sempre o mal pior é ter nascido».
Pelo menos num ponto desta série de belos ensaios nos parece que Eduardo Lourenço não acerta no alvo: ao interpretar a célebre «Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a Chamada Opinião Liberal» sem acentuar o seu carácter irónico. Aliás, como em obra recente, já apreciada nestas páginas, referiram Luís Machado de Abreu e José Eduardo Franco, nem Sampaio Bruno, nem António Sardinha, nem Hernâni Cidade ou Joaquim de Carvalho suspeitaram do sentido irónico do texto de Antero. Escrevemos então: «A verdade é que, para o intelectual açoriano, não era possível conciliar Igreja [Romana] e liberdade. Daí que tenha proclamado [aos católicos]: ‘Dum lado a Igreja e do outro a liberdade. Submetei-vos – ou rebelai-vos!’.» Tanto quanto compreendemos, o autor de «Heterodoxia» considerou como uma tragédia pessoal do poeta algo que já deixara de o ser – a oposição entre a pureza do seu cristianismo e o do Papa. Era jovem, mas já tomara de um vez por todas partido pela liberdade de pensamento – mesmo desobedecendo ao arbítrio do Sumo Pontífice.
Também a crítica da análise das «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» peca, segundo pensamos, por alguma fragilidade. Como se sabe, o poeta condenou a transformação sofrida pelo catolicismo depois do Concílio de Trento; exaltou a liberdade moral conquistada pela Reforma, apelando para o exame e a consciência individual; insistiu na distinção entre sentimento cristão e instituição católica, entre a fé e o dogma. Ser-lhe-ia possível hesitar entre o cristianismo que foi «a Revolução do mundo antigo» e o seu arremedo implantado depois de Trento na Península Ibérica?
Eduardo Lourenço, «Antero ou a Noite Intacta», Gradiva, 2007, 162 páginas