António Rego Chaves
Primeiro reparo: este não é, como o título indicia, «O Livro Negro do Cristianismo» mas, apenas, um «livro negro» sobre a Igreja Católica, Apostólica e Romana. Segundo reparo: a temática exigiria mais do que a simples enumeração, mais ou menos bem articulada, de datas e factos: apela para uma explicação coerente de muitos séculos de história, não apenas da Europa, mas da África, da América e da Ásia. Não é o caso desta obra assinada pelos italianos Jacopo Fo, Sergio Tomat e Laura Malucelli.
É fácil redigir um panfleto, mas é trabalhoso, muito trabalhoso, interpretar acontecimentos históricos. Os autores ficam-se pela solução «light» – e perdem a oportunidade de demonstrar por que motivos é condenável o que condenam. Não que os crimes praticados por «católicos» em nome de Deus não fossem merecedores de total execração: mas exigia-se mais rigor, investigação aprofundada, melhor enquadramento de uma narrativa que, por carência de contextualização, se fica, quase sempre, pelo superficial.
Ninguém, hoje, segundo presumimos, procura justificar as Cruzadas, ou a Inquisição, ou o Colonialismo. Mas não se pode incorrer no erro de julgar, à luz de conceitos do século XXI, as intenções dos cruzados, os ditames dos inquisidores, as ambições dos colonialistas. O anacronismo histórico é um dos maiores «pecados» em que poderá incorrer quem pretende explicar o passado e o investigador arrisca-se a não entender o que estuda. É grave.
Pelas razões apontadas, este livro pouco ou nada nos vem dizer de notável. Das Cruzadas nós, adultos, já sabíamos praticamente «tudo» o que é importante, da Inquisição, também, do Colonialismo, então, é melhor nem falarmos. Mas o problema não reside aí, porque seria meritório explicar as Cruzadas, a Inquisição ou o Colonialismo aos mais jovens. O problema reside na circunstância de que, ao contrário de «O Livro Negro do Comunismo» ou de «O Livro Negro do Capitalismo», esta obra de autores italianos, por grandes defeitos que tenham as outras duas, também elas colectivas, publicadas em língua portuguesa, não é didáctica: só debita «casos», números, nomes. Não chega, é preciso ir mais longe. É preciso fazer como fez Marc Ferro, em «Le livre noir du colonialisme»: dar voz a especialistas da história de todos os continentes, para tentar entender o que pode ser entendido, ainda que sem abdicar de juízos de valor – porque em todas as épocas em causa, se houve os que aprovaram o fanatismo, a intolerância, as atrocidades, também houve os que, por vezes arriscando a vida, lutaram contra a barbárie levada a cabo em nome do «catolicismo».
E, no entanto… E, no entanto, talvez seja benéfico não esquecermos que este livro não se refere apenas a um passado remoto que se inicia com os primeiros cristãos, o imperador Constantino, o Concílio de Niceia e as heresias antigas, mas se debruça também sobre a Idade Contemporânea, depois de passar pela Idade Média e pela Idade Moderna. Uma Idade Contemporânea que abarca todo o século XX e se estende até hoje, quando todos – ou quase todos – os membros da hierarquia «católica» parecem garantir-nos que já não existem cruzados, inquisidores, colonialistas. E então os «católicos» integristas do Opus Dei, tão apostados em conquistar poderes e em sabotar as decisões do Vaticano II? E que dizer do antigo Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, o Santo Ofício, antes conhecido por Santa Inquisição, o alemão Joseph Ratzinger, Papa Bento XVI, com a sua reiterada oposição à comunhão para os casais católicos divorciados, à contracepção, ao casamento dos padres, ao sacerdócio das mulheres, aos homossexuais? E, para não insistir no «ensurdecedor silêncio» de Pio XII sobre o extermínio de judeus, de ciganos, de negros, de homossexuais, como não recordar que a ditadura militar argentina do general Videla (1976-1983) beneficiou do apoio da Santa Sé? E que João Paulo II, em Abril de 1987, se encontrou com o sinistro Pinochet em Santiago do Chile, tendo a seguir concedido ao déspota, já depois da sua queda, como que para lhe agradecer os serviços prestados à causa do anticomunismo, uma «bênção apostólica especial»? Enfim, será de deixar passar em claro que a Teologia da Libertação, na pessoa de um dos seus mais eminentes representantes, Leonardo Boff, mereceu do então cardeal Ratzinger uma condenação, aprovada pelo Papa Wojtyla, que o obrigaria ao silêncio, ou seja, à privação da liberdade de expressão do pensamento?
Na introdução, escreve Jacopo Fo: «Creio que, em parte, devemos também ao cristianismo o facto de o mundo hoje parecer menos desumano, sádico e violento do que no passado. Ao longo de 2000 anos, milhões de crentes têm tentado testemunhar de todas as formas as palavras de paz e de amor que Jesus pregou. Viam-se crentes à cabeceira dos doentes, a recolherem órfãos da rua, a cuidarem dos feridos depois das batalhas e dos saques.» Subscreveríamos quase por inteiro estas piedosas evocações, com uma única ressalva: foram poucos, muito poucos, os cristãos que se revelaram dignos da mensagem de Jesus ou, para não visarmos tão longe, de um São Francisco de Assis. E isto talvez porque, como acrescenta algumas linhas adiante o próprio autor, «os centros de poder das principais igrejas cristãs foram conquistados por indivíduos astutos e sem escrúpulos, dispostos a tirar proveito da fé e do impulso místico apenas para conseguir riqueza e autoridade.» O que importa saber, agora, já não é tanto se estas últimas afirmações são por inteiro adequadas quando aplicadas ao passado, mas se devem ser, com inteira justeza, consideradas válidas no presente. Caso a resposta seja afirmativa, pouco mais nos resta do que olhar, ver…e fugir não só do Opus Dei como de todos os «cultos oficiais» do cristianismo.
«O Livro Negro do Cristianismo», Editorial Magnólia, 2009, 263 páginas