António Rego Chaves
John Maynard Keynes (1883-1946) foi um dos mais brilhantes intelectuais britânicos da sua geração. Participou na Conferência de Paris de 1919 e publicou nesse mesmo ano um livro que se revelaria premonitório, «As Consequências Económicas da Paz», onde criticava frontalmente a imposição, pelo Tratado de Versalhes, de excessivos encargos à Alemanha. Acresce que frequentou o famoso Grupo de Bloomsbury, no qual pontificavam Virginia Woolf e várias figuras ligadas a Cambridge, como os escritores E. M. Forster e T. S. Eliot ou os filósofos Bertrand Russell e G. E. Moore.
Os textos de «Two Memoirs», agora traduzidos para castelhano, foram lidos por Keynes para aquele restrito número de amigos e apenas publicados depois da morte do grande economista. No primeiro, descreve as peripécias da sua participação nas negociações dos Aliados com a Alemanha, após o termo da Grande Guerra; no segundo, «As Minhas Primeiras Crenças», volta a atenção para a Cambridge do início do século XX, altura em que surgiram os «Principia Ethica» de G. E. Moore.
A propósito desta obra (existe tradução portuguesa, graças à «insubstituível» Fundação Gulbenkian), afirma: «Havia um capítulo (…) a que não prestámos a menor atenção. Por assim dizer, aceitámos a religião de Moore, e pusemos de lado a sua moral. De facto, em nossa opinião, uma das maiores vantagens que tinha a sua religião era que tornava desnecessária a moral – entendendo por ‘religião’ a atitude de cada um para consigo próprio e o essencial, e por ‘moral’ a atitude de cada um para com o mundo exterior e o acidental.» (…) A nossa religião seguia fielmente a tradição puritana inglesa de nos preocuparmos fundamentalmente com a salvação das nossas almas.» Falando desta sua «bíblia», que era também a dos seus pares de Bloomsbury, sublinha: «O Novo Testamento é um manual para políticos comparado com a espiritualidade do capítulo de Moore sobre ‘O Ideal’. Não conheço nada comparável na história da literatura desde Platão. E é melhor do que Platão porque está bastante desprovido de fantasia.» Em tal contexto, sintetiza: «O problema é que nós levámos o individualismo dos nossos indivíduos demasiado longe.» Paradoxalmente, Keynes é hoje admirado sobretudo por ter escrito «A General Theory of Employment, Interest and Money» (1936), uma tão lúcida quanto vigorosa defesa da necessidade de intervenção estatal para pôr termo ao desemprego e alcançar o pleno emprego da mão-de-obra disponível em sociedade capitalista. Tarefa decerto bem pouco individualista e nada neoliberal…
Quanto à Conferência de Paz que conduziu ao Tratado de Versalhes, as considerações expostas por Keynes não terão hoje um acentuado sabor a originalidade, mas a verdade é que foi ele um dos primeiros que se aperceberam dos efeitos catastróficos que poderiam ter para todo o Mundo o empobrecimento dos vencidos da Primeira Guerra Mundial e o amesquinhamento da República de Weimar visado pela França do intransigente primeiro-ministro Georges Clemenceau. Com admirável inteligência do que se encontrava de essencial em jogo nas conversações, Keynes disserta sobre as tentativas de prolongamento do bloqueio de alimentos à Alemanha em 1919, meses depois do Armistício. Observa o escritor David Garnett na apresentação: «Hitler explorou eficazmente o prolongamento do bloqueio do modo mais útil para ele, a fim de organizar a propaganda contra o Tratado de Versalhes e os seus signatários».
Dotado de grande sentido de humor, John Maynard Keynes, representante financeiro inglês no Conselho Económico Supremo, utiliza a sua irreverência para «fotografar» as personagens intervenientes nas negociações, sejam elas britânicas como o almirante Browning («lobo do mar do mais intratável e ignorante que, de acordo com a mais elevada tradição náutica, tinha um enorme e autêntico garfo no lugar da mão e nenhuma outra ideia na cabeça que não fosse a eliminação e humilhação posterior de um inimigo desprezado e derrotado»), sejam francesas como o marechal Foch («o seu estreito intelecto é, em sentido estrito, militarista, nove décimas partes dos assuntos da humanidade ficam fora do seu campo de visão e o seu entendimento é incapaz de lhes dedicar atenção»). Sabendo-se que o principal objectivo do primeiro-ministro Lloyd George e do Presidente Wilson era «encontrar um modo de alimentar a Alemanha», evitando-se assim que o povo vencido resvalasse para a extrema-esquerda ou para a extrema-direita, tornava-se necessário contornar a tenaz oposição francesa a qualquer política de apaziguamento. É esse processo que Keynes relata e cujo malogro seria evitado «in extremis» pela firme intervenção do chefe do governo britânico.
Conta o autor que Lloyd George «insistiu com todas as suas forças para que se dessem os passos necessários a fim de se aprovisionar de imediato a Alemanha. A honra dos Aliados estava em jogo. Nos termos do Armistício, ao Aliados tinham dado a entender a sua intenção de permitir o envio de comida para a Alemanha.» Não cumprindo a sua palavra, garantiu o estadista, «os Aliados estavam a semear ódio para o futuro: estavam a acumular sofrimento, não para os alemães, mas para eles próprios». Clemenceau não cedeu imediatamente, mas a França começou a partir desse exacto momento a perder terreno. Divulgada a notícia segundo a qual era gravíssima a mortalidade entre as mulheres, as crianças e os doentes alemães, muitas vezes devido à fome, tornou-se quase insustentável para Paris manter o seu cabeçudo obstrucionismo. Um contacto pessoal entre Keynes e um funcionário de Berlim, no sentido de ser produzida uma declaração satisfazendo uma última exigência gaulesa, fez o resto: os comboios com alimentos iniciaram finalmente a sua marcha para a Alemanha.
O Tratado de Versalhes, porém, acabaria por consagrar a sede de vingança de alguns dos vencedores da Grande Guerra, abrindo caminho ao nazismo. Keynes só viria a ser escutado em 1945, quando o Ocidente finalmente compreendeu que urgia ajudar a Alemanha vencida a restaurar a sua economia arrasada pela Segunda Guerra Mundial.
John Maynard Keynes, «Dos Recuerdos», Acantilado, 2006, 188 páginas