António Rego Chaves
Talvez alguém nos desvende um dia a razão por que Antero, mais de um século depois da sua morte, continua a exercer sobre muitos de nós um tão extremo fascínio que quase nos faz tomá-lo por nosso coetâneo. Talvez alguém nos desvende, também, os porquês do seu suicídio e, ao desvendá-los, nos revele algo que não sabemos sobre a condição humana. Talvez.
Assim sendo, vamos escavando, desta vez guiados pela sensibilidade e erudição de Ana Maria Almeida Martins, o terreno das recordações de um amigo e grande admirador de Antero, Luís de Magalhães que, após a morte do poeta, foi governador civil de Aveiro (1892), deputado em várias legislaturas, ministro dos Negócios Estrangeiros de João Franco entre Maio de 1906 e Maio de 1907, titular da mesma pasta durante a «Monarquia do Norte». Era um jovem literato de 21 anos quando conheceu o autor das «Odes Modernas» – e a poesia parece nunca o ter abandonado, apesar da política. Demonstram este facto os textos que dedicou ao ídolo dos seus verdes anos e que fez publicar, praticamente, durante todo o resto da vida.
Herculano já achara que «isto dá vontade morrer» – e se calhar tinha razão, quer visasse apenas uma certa e determinada conjuntura da sua época, quer estivesse a pensar no Portugal de sempre, que tão bem conhecia na sua qualidade de historiador, quer se referisse, genericamente, à fauna humana. Fosse como fosse, Antero é seu emérito herdeiro: algo nos diz que não se podia conformar com o que via em seu redor, que o enojamento o fez contorcer de revolta antes de atingir extremos de misantropia e de rejeição do mundo dos outros e de exclamar que o Não-Ser é «o Ser único absoluto». Que leva alguém a falar assim? A angústia de existir? Talvez sim. Mas que conheceu antes dela? Muita gente íntegra, muita gente de bem, muita gente que lhe deu a possibilidade de acreditar no futuro?
Oliveira Martins, seu interlocutor de sempre, «dixit»: «Este homem, fundamentalmente bom, se tivesse vivido no século VI ou no século XIII, seria um dos companheiros de São Bento ou de São Francisco de Assis.» Porque não? Mas nenhum daqueles santos teria ousado ir tão longe no plano da especulação filosófica ou da heterodoxa «mística sem fé» e escrever a seguinte «heresia»: «Nesta viagem pelo ermo espaço/Só busco o teu encontro e o teu abraço, /Morte, irmã do Amor e da Verdade!»
Verdade? «Verdades» há muitas sobre o poeta, a começar pelas do próprio, na obra e na celebérrima carta a Wilhelm Storck, passando pela já citada de Oliveira Martins no prefácio aos «Sonetos» ou pela de Eça no «Santo Antero». E há a que arranca da ideia-força segundo a qual o choque entre o Pensamento e a Realidade pode tornar-se insuportável para um homem vulnerável: talvez fosse a «verdade» de Luís de Magalhães. Ou talvez soubesse mais do que disse e tenha posto a amizade acima de tudo. Talvez.
Escreveu o autor em 1892, assinalando o primeiro aniversário da morte de Antero, que distinguia três períodos na vida do seu amigo: o «da Fé e da Acção», o da «crise pessimista» e o «período filosófico, o período de reconciliação com a Vida, por meio de uma espécie de pietismo humano». (…) «Duas oscilações bruscas (…) se dão, contudo, no derradeiro período, determinando como que dois movimentos regressivos aos estados anteriores: um ao período da Acção com o seu reaparecimento efémero na vida pública, por ocasião do conflito anglo-luso; outro ao período do Pessimismo com a terrível crise psicológica – que o levou à trágica alucinação do suicídio.» Esqueçamos o desastrado termo «alucinação»…
O «Período da Acção» (1858-1876) envolveria a entrada na Universidade de Coimbra, a publicação das «Odes Modernas», a «Questão Coimbrã», as Conferências do Casino e a passagem pela política activa. Antero seria então «revolucionário nas letras com a iniciação da poesia filosófica» e «revolucionário na política com a iniciação do movimento socialista». (…) «Com a mesma ardente fé com que um cavaleiro mediévico professava numa ordem militar religiosa, assim Antero professou na ordem revolucionária do Socialismo.» (…) Sendo «rico e fidalgo de origem», «abdicou da sua classe, renunciou à sua situação social e à sua fortuna. Não foi apenas um «propagandista de palavras», (…) «pregou com o exemplo».
Depois, «a crença abala-se, a fé murcha». (…) «Murchou nele a fé – disse. Não. Transmudou-se. A fé do Ser cedeu o lugar à fé do Não-Ser. O amor da Vida substitui-se pelo amor do Nada.» Dir-se-ia que aderira à «religião niilista». É a antítese do estado anterior, que precede os anos vividos em Vila do Conde, de 1881 a 1891 – estes marcados pela «prática de calmas virtudes obscuras de caridade, de bondade, de amor dos pequenos e dos desvalidos, (…) adoptando órfãs, ensinando a ler crianças, partilhando a sua casa com uma família humilde de operários». (…) «Não voltou de novo, passada a crise, ao campo da acção, porque a fé antiga e o entusiasmo de outros tempos haviam-nos esfriado a madureza da idade e a rude lição do mundo. Mas a negação absoluta do segundo período dissipara-se ante as afirmações morais deste período novo.» (…) «Nem o fervor da acção – nem o desespero do niilismo.» O equilíbrio? Talvez.
Em 1890, na sequência do conflito anglo-luso, a Liga Patriótica do Norte fá-lo-á «reincidir» na Acção, mas só por uns meses. Seria a última ilusão. Vê depois os políticos voltarem à politiquice, os indiferentes à indiferença, os abstencionistas à abstenção. Já vira tudo o que tinha a ver. Assim como Alexandre Herculano voltara as costas à choldra que tinha pela frente, e fora, de vez, refugiar-se em Vale de Lobos, Antero de Quental escolhe, em 1891, São Miguel como último destino. Para viver? Talvez para morrer.
Luís de Magalhães, «Antero de Quental em Vila do Conde». Recolha, prefácio e notas de Ana Maria Almeida Martins, Tinta-da-china, 2010, 143 páginas