António Rego Chaves
«Cândido ou o Optimismo» pode ser interpretado como uma sarcástica reacção do senso comum ao pensamento de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716). Quando Voltaire faz publicar por toda a Europa este seu polémico «conto filosófico», em 1759, o alemão já está morto, mas não a sua teodiceia. Nesta ocupa lugar proeminente o princípio da razão suficiente, de acordo com o qual nada sucede na realidade sem que exista uma razão suficiente para que aconteça e nada pode explicar-se da realidade se não se encontra uma razão suficiente que o explique. A razão suficiente para que Deus escolha determinados possíveis e não outros para fazerem parte da realidade residiria na conveniência ou graus de perfeição que possuem os diversos mundos possíveis. Haveria um número infinito de mundos possíveis, mas apenas um teria chegado à existência. Este seria, portanto, o melhor dos mundos possíveis e a existência do mal no mundo não significaria que Deus é o seu autor, mas demonstraria unicamente que o espírito humano é demasiado limitado e que o mal é uma parte necessária no conjunto harmónico do mundo. A aparente imperfeição do mundo criado resultaria, apenas, do nosso desconhecimento do papel que o imperfeito desempenha na ordem perfeita total.
Nos anos que decorrem entre 1750 e 1770, Voltaire confrontar-se-á com a metafísica de Leibniz e com a sua teologia optimista. Utilizará para as pôr em causa a revolta perante a condição humana, a ironia, a mordacidade. E, no entanto, o francês, convicto deísta, crê na existência de um «ente supremo» incognoscível, estranho ao destino da sua criação, indiferente à dor dos homens. É a miséria do «melhor dos mundos possíveis» que Voltaire denuncia neste texto, obra de ficcionista e de filósofo: a Guerra dos Sete Anos, o terramoto de Lisboa, as expedições contra os jesuítas no Paraguai, um sem-número de desgraças públicas e privadas. Que Deus é esse que não conhece a piedade, que mundo é este onde o sábio Pangloss, acrítico seguidor de Leibniz e de Alexander Pope, sustenta sempre sem pestanejar que «tudo está bem»?
Cândido escuta os gemidos dos que sofrem, dos que são enviados como carne para canhão para os campos de batalha, dos que são vítimas de toda a espécie de injustiças por parte dos seus semelhantes. Um pouco por todo o lado – excepto no mítico Eldorado, antiga pátria dos Incas, onde os seus habitantes parecem viver felizes mas o nosso herói sentirá como insuportável a ausência da sua bem-amada Cunegundes –, vê imperar a avidez, o crime individual e colectivo, os padres que ensinam necedades, que zaragateiam, que governam, que conspiram, que queimam pessoas só porque não pensam como eles querem que pensem. Um pouco por todo o lado a virtude é ultrajada e impunemente esmagada pelo vício. Um pouco por todo o lado homens, mulheres e crianças indefesos são tratados pelos poderosos, não como pessoas, mas como coisas.
Voltaire escreve numa carta a Élie Bertrand, em Fevereiro de 1756, logo após o terramoto de Lisboa: «Aqui para nós, meu caro senhor, Leibniz e Shaftesbury, e Bolingbroke e Pope não pensaram senão em ter espírito. Por mim, sofro e digo-o.»
Comentará Gilles Deleuze: «O que se joga de Leibniz a Voltaire é um momento fundamental da história do pensamento. Voltaire é as Luzes, quer dizer, precisamente um regime da luz, da matéria e da vida, da Razão, muito diferente do regime barroco, mesmo se Leibniz preparou esta nova idade: a razão teológica desmoronou-se, e torna-se pura e simplesmente humana.»
À beira do suicídio, Cândido escolherá fechar-se sobre si mesmo, esforçando-se por esquecer o mundo o mais possível (recorde-se o célebre «é preciso cultivar o nosso jardim», a conclusão do «conto filosófico»). Voltaire não lhe seguiu o exemplo: lutou contra a guerra, contra a miséria, contra a valorização do sofrimento, contra o dogmatismo, contra a intolerância, contra a injustiça. Denunciou a hipocrisia e a maldade dos homens, a desordem dos acontecimentos, o absurdo das instituições. Condorcet concluirá assim a sua introdução ao «Poema sobre o Desastre de Lisboa»: «Que importa que tudo esteja bem, desde que procedamos de tal forma que tudo fique melhor do que estava antes de nós?» Mal sabiam ambos que estavam para vir duas guerras mundiais que causariam dezenas de milhões de mortos, entre os quais seis milhões de judeus exterminados pelo povo alemão. Pesando cada palavra, mas em sentido inverso do escolhido por Bento XVI, sublinhemos «pelo povo alemão» e não apenas «por um grupo de criminosos» nazis, como quis fazer passar o Papa («filho do povo alemão») que no mês passado interpelou em Auschwitz o Deus de misericórdia nestes escorreitos termos: «Senhor, porque ficaste silencioso? Porque permitiste isso?» Ousará o Vaticano penitenciar-se de ter posto o livro de Voltaire no Index em 1762 e meditar na sua dura lição, ainda que com um indesculpável atraso de quase 250 anos?
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Algumas palavras são devidas aos responsáveis por esta bela edição, com tradução, notas e posfácio de Rui Tavares e ilustrações de Vera Tavares. As notas tornavam-se indispensáveis para acompanhar um texto que evoca personagens e factos hoje quase desconhecidos. Quanto ao oportuno posfácio, consagrado à recepção de «Cândido» no nosso país, o censor de 1769 é «seco e conciso», como salienta Rui Tavares: «o livro em questão contém ofensas várias à nação portuguesa e às instituições do reino, incluindo a Santa Inquisição. Acima de tudo, é uma sátira à Universidade de Coimbra – a menina dos olhos do pombalismo, após a reforma de 1768 – porque supõe que esta poderia mandar que se fizessem autos-da-fé para conter terramotos.» No que concerne a Vera Tavares registe-se apenas que mais uma vez os seus desenhos evidenciam um indesmentível talento, apimentado por raro sentido de humor. Enfim, regalam-nos os olhos e estimulam-nos a pôr em dúvida que este mundo seja «o melhor dos possíveis».
Voltaire, «Cândido ou o Optimismo», Tinta-da-China, 2006, 207 páginas